Scooby-Doo: O Filme



Entretenimento é um negócio curioso. Às vezes um filme pode flopar totalmente no box-office e/ou crítica, mas ganhar uma legião de fãs no futuro, como foi o caso de Dark Crystal e Labirinto. Como também acontece de um filme estar em alta por um tempo, mas por algum motivo simplesmente sumir, como o filme de Jem e as Hologramas.


Mas este é um filme que merece ser falado. Não por ser bom, mas porque o próprio histórico e o resultado que tivemos é um fascinante estudo de como um filme baseado em um desenho antigo pode aparecer, e uma cápsula do tempo de como a Warner agia no fim dos anos 90 e início dos 00.
E porque eu não tenho nada melhor pra fazer da vida.



E o nome da guria que o Salsicha
se apaixona se chama Mary Jane.
Porque sutileza é tudo.
Antes de falar sobre o filme propriamente dito, é obrigatório falar da época em que ele surgiu.

Scooby-Doo basicamente viveu de reprises pelos anos 90. O último longa tinha sido um filme pra TV chamado Arabian Nights, e só teve outro em 94, com o lançamento de Zombie Island em 98. Daí seguiu-se Witch's Ghost (99), Alien Invaders (00) e Cyber Chase (01). Esses filmes são considerados continuação direta do desenho dos anos 60, mas eles usam um tom bem mais sombrio.
Aliás, Zombie Island usa a mesma estratégia de marketing ao anunciar que “agora os monstros são reais”, embora monstros de verdade tivessem aparecido em outras encarnações.


Nesse mesmo tempo, o Adult Swim exibia desenhos baseados nas séries da Hanna-Barbera, incluindo curtas do John KRIFALUCHI, criador de Ren e Stimpy. Que, diga-se de passagem, são TERRÍVEIS.



E um ano antes, veio o filme de Josie and the Pussycats, que desconstruía respeitosamente a série, além de ser praticamente um amálgama saudável entre os quadrinhos e o desenho animado.

Alguém na Warner deve ter visto e achou que seria uma boa idéia fazer a mesma coisa com Scooby-Doo, o que impulsionou um roteiro onde Salsicha seria um maconheiro, Daphne e Velma teriam um relacionamento nas entrelinhas, e teria mais referência a maconha e no geral, teria um tom mais cruel.

Até que alguém se deu ao trabalho de ler o roteiro e lembrar que eles acabaram de ter 4 filmes pra TV, todos voltados pra criança (por mais sombrios que sejam, ainda eram family-friendly), fora a série em reprise em um canal assistido por uma maioria esmagadora de crianças, e que as mesmas crianças iriam assistir ao filme.

Os atores assinaram pro roteiro, e de última hora fizeram uma reforma geral. Maaaas… À medida que formos vendo, vocês vão ver como ainda sobraram muitas referências à esse primeiro roteiro, tendo até cenas gravadas mas posteriormente deletadas


Então, do que se trata o filme?




O filme começa no final de um episódio comum, com eles montando a armadilha e desmascarando o fantasma. O que é confuso à beça, já que essa cena não deixa claro a que público se refere.

Crianças que não cresceram com a série não vão entender, e adultos que cresceram com a série vão estranhar essa cena logo no começo.



Entretanto, o filme logo toma um rumo interessante de separar o pessoal, e botar cada um em seu próprio caminho. Essa é legitimamente uma boa idéia pra um filme, é um problema que eles tem que resolver em conjunto e que pode ter grandes impactos na vida de cada personagem. Como o filme da Grande Família é movido pela idéia da morte de Lineu.


O problema aqui é que é tudo muito superficial, tudo acontece num espaço de 15 minutos. Não temos muito dos personagens pra nos importarmos com eles.

“Ah mas é claro que conhecemos os personagens, a gente assistiu o desenho, Kapão sabe nada bocó”, eu já imagino você dizendo, mas permita-lhe lembrar que os personagens do filme são diferentes do desenho.


No desenho, eles eram bastante simples, até porque era um desenho de baixo orçamento. E funcionava bem, pro que se propunha. O foco era realmente o mistério, e os personagens te davam o básico de personalidade o suficiente pra história fluir, ao mesmo tempo que tu se identificava com algum e se projetava lá.


No filme, obviamente esse conceito não funcionaria, e em vez de fazer personagens de verdade, ele nos apresenta esteriótipos de esteriótipos. Isso nos remete ao conceito original do filme, quando você para pra analisar a personalidade e representação de cada personagem como uma paródia, é engraçado e faz sentido. Mas no momento que eles abandonaram esse conceito, essas personalidades começam a soar estranhas.

Entretanto, de alguma forma fizeram funcionar no filme. Uma vez que o grupo se separa, o impacto neles é justamente algumas mudanças, como Daphne aprender artes marciais, Velma ir pra NASA, Fred ser um babaca egocêntrico profissionalmente, e Salsicha e o Scooby moram na van porque… Motivos.

Ainda assim, não é o suficiente pra torcermos por eles, porque, como veremos mais adiante, eles tão com um pé fora dos personagens.



Enfim, 2 anos depois disso eles são reunidos pelo Mr. Bean, que tem uma ilha-parque-resort temático de terror, onde os estudantes chegam animados e saem zumbificados, e eles acabam descobrindo uma seita que envolve monstros antigos e um plot twist merda.

Já que eu falei um pouco dos personagens e como a funcionalidade deles é basicamente um meio-termo (pendendo pro ruim, é bom ressaltar), falemos do que funciona de fato: a identidade visual.



Os personagens são muito bem caracterizados, mantendo aparência física e trejeitos do desenho (exceto Daphne, que foi a que mais sofreu mudanças, mas ainda faz um bom trabalho). Eles usam roupas com as cores já conhecidas, mas o pessoal do figurino fez combinações que não ficassem monótonas e ao mesmo tempo tivessem o efeito Sentai Civil.


Cê sabe, quando os cara usa a roupa correspondente à cor o tempo todo.

E outra coisa que funciona lindamente bem são os cenários. De fato, as animações nas séries originais era ruins, mas se tem uma coisa que você não pode falar mal são os cenários. Todos eles tinham a atmosfera fantasmagórica, sombria e detalhada até demais. Cada background era uma obra de arte por si só. Do mesmo jeito aqui, com ótimos designs de cenário que emulam quase que perfeitamente os cenários da série animada.

Infelizmente, o coração do filme tá no lugar errado, e por isso todo o resto cai.

Quanto menos falarmos da
competição de peidos, melhor.
Pra minha sanidade mental, no caso.

Não se sente quase nada de genuinamente bom, que queira realmente fazer algo que respeite os desenhos originais. A animação do Scooby e dos monstros é uma das piores que eu já vi, e lembremos que esse filme veio no mesmo ano de Senhor dos Anéis: As Duas Torres.

“Ah mas é pra referenciar a animação ruim”A idéia do filme é transpôr o desenho pro mundo real. Se ele falha em te mostrar um mundo realista, então metade do propósito dele vai pro saco. E sim, dá pra fazer o Scooby realista e ao mesmo tempo mais cartunesco, dá pra achar um equilíbrio aí. Fora que o desenho tinha um motivo pra ser ruim, né.

Mas a cereja do bolo, o motivo maior que prova que esse filme não se importa em nada com o material de origem, é o fato do Scooby-Loo ser o vilão.

Sim, spoiler. Eu estou lhe fazendo um favor.




Monstros reais? Ok. O mistério sobre capturar almas pra conseguir poder e dominar o mundo? Clichê e mal explicado, mas wathever, ao menos eles se esforçam em fazer o mistério funcionar. O Luna Ghost ser o real culpado de tudo como nos primeiros roteiros? Precisaria de um malabarismo de narrativa, mas ficaria massa também.


Mas não Scooby-Loo. Ele era um personagem irritante e briguento, mas tinha um bom coração. Durante o filme Velma conta que Scooby-Loo era um babaca de marca maior, até que eles ABANDONARAM ELE NO MEIO DO DESERTO.

Porque nenhum filme pra
crianças estaria completo sem
uma referência ao saco escrotal.

É esse tipo de humor negro e sentimentos cruéis que permeiam o filme, e que acabam saindo dos conceitos originais dos personagens. Josie tirava sarro da própria série, de alguns conceitos, mas sempre tentava se manter dentro dos personagens que tentava representar.
Scooby deveria ser o guardião de Loo, fora que ele era sobrinho dele.

Isso porque eu nem citei que o Salsicha deixaria os amigos morrerem pra não ter que enfrentar um monstro.



E aina por cima, as piadas são fraquíssimas. O timming é ruim, e as piadas em si não sabem se querem ser pra adultos ou pra crianças. No geral ele acaba usando mais piadas pra adultos, o que causa ainda mais confusão porque ele não quer mais ser a paródia pra adultos que inicialmente seria! Entendem a confusão?

Pois é, nem eu.

No final do filme eu tava assim

Eu sei, a resenha tá uma bagunça, mas o próprio filme é uma bagunça. Não sabe se quer ser uma paródia mais adulta dos desenhos, se quer ser uma homenagem aos fãs nostálgicos, se quer apresentar a série pra crianças ou simplesmente ignorar a existência delas. Essa crise de identidade que atrapalha o desempenho do filme, que embora tenha excelentes cenários, bons conceitos e atores que tentam o máximo possível tirar leite de pedra, o único mérito real foi o de trazer foco pra franquia de novo, nos dando boas adaptações como O Que Há de Novo, Socoby-Doo?.


E pra finalizar meus argumentos, Tim Curry, grande fã da série e um dos melhores Muppets, foi oferecido o papel como vilão do filme. Ele leu o roteiro e viu que Scooby-Loo seria o vilão, e então recusou.

Sem mais perguntas, meritíssimo!

Pode confiar.