The Mermaid (2016)


Comédia é uma das coisas mais difíceis de se fazer; drama é uma das mais fáceis. Num drama, o cara acorda, faz o café, vai pro trabalho. Em uma comédia, você precisa pensar em como fazer essa simples rotina se tornar cômica, o timming exato, a personalidade do personagem, e normalmente precisa-se ter um motivo pra que as coisas engraçadas aconteçam, sem falar na reação de tudo.

E é curioso ver como comédia, mesmo a nonsense, muda de país pra país. "Um Duende em Nova York" é diferente de "RRRrrrr! Na Idade da Pedra". Quer dizer, eu acho que Elf nem se encaixa em nonsense, mas os únicos exemplos de comédia do tipo que eu consigo pensar vindo dos EUA são a franquia gerada por Scary Movie, que pra mim se encaixam em sua própria denominação decadente, "Filme que acha que apontar memes e coisas que existem é comédia". Mas divago.

Uma das poucas comédias do gênero que eu vi foi Kung-Pow, que tem aquela cena de luta com a vaca que você provavelmente deve ter visto em algum ponto dos anos 2000, no formato de um .wmv com qualidade em 140p baixado de alguma corrente de e-mail. 
Aliás,que eu quase confundi com Kung-Fusão, de 2004, que é do mesmo criador de Kung-Fu Futebol Clube e do filme que veremos hoje.

O que isso tudo tem a ver com "As Travessuras de uma Sereia", exceto o título BR incrivelmente imbecil e desonesto? Bem, vem comigo.



"Eu estou a poucos pelos faciais
de me tornar o próximo Toninho Forte."

O filme narra sobre Liu Xuan, um jovem empresário riquíssimo e que passa os dias gastando dinheiro e sendo bajulado por todo mundo. Sua última grande aquisição foi um Golfo, onde sua equipe faz pesquisas submarinas usando um sonar que afasta os seres da região, a ponto de matá-los. Até que, durante uma festa, Liu recebe o número de uma moça fazendo cosplay de Filó, que pede que ele ligue pra ela o mais rápido possível. Mas Liu não sabe que a moça na real é uma sereia, enviada pelo seu grupo pra assassinar Liu por causa dos danos ao meio ambiente que ele vem causando. Mas, obviamente, ao se aproximar do cara a guria se apaixona por ele e ele por ela, que poderá custar a sobrevivência de sua espécie.



Antes de tudo, a direção de arte é esplêndida. Nota-se que os caras pesquisaram o mar e suas características pra fazer roupas, armas, e cenários convincentes e ricos em detalhes. Eu adoro o covil das sereias, que foi projetado pra que eles consigam passar do único canto que não é afetado pelo sonar pra terra firme, e vice-versa. E as armas também, feitas com esqueletos de peixes. E toda a paleta de cores do lugar, que é fria, mas acolhedora; que contrasta com as cores elegantes de quando estamos em terra firme, ou até mesmo as cores exageradas que ressaltam a riqueza de Liu, usando mais amarelo do que teus dedos depois de comer um Cheetos de cheddar.


O filme existe em um mundo onde todo mundo tem um certo grau de idiotice, que é o que a maioria das comédias faz, de fato. Boa parte da comédia nessas histórias vem de caricaturas da vida real, exageradas de propósito pra que aconteçam as coisas que são impossíveis de acontecer no nosso mundo, mas tem uma base de realidade, então as piadas sejam identificáveis.

Ok, vou dar um ótimo exemplo de como funciona esse mundo e sua comédia. Tem uma cena onde uma das sócias de Liu começa a mostrar seu lado mais maligno e mandona, e começa a insultar um dos assistentes, e ele sempre concordando. Até que ela manda eles irem embora, e ele saem dando cambalhota.



...porque? Eu sei lá, é o tipo de coisa que é tão surreal, mas que de alguma maneira simplesmente combina na cena, e é inesperado o suficiente pra ser engraçado.


Agora, nem sempre a comédia vai por esse caminho, claro. Mas sempre é um estilo... Meio que de contraste, eu sei lá se tem um termo específico pra isso. Reações que deveriam ser mais lentas e exigir mais pensamento são rápidas, e reações que deveriam ser mais urgentes e rápidas são feitas com mais tempo de tela. Por exemplo, o Polvo lá tá explicando o plano pra matar Liu, até que uma das sereias atira um dardo em seu peito. A reação do Polvo é tipo "viram? O plano é simples" Alguém nota "ow tem espuma saindo da tua boca" e o Polvo meio que "é, eu sei, é porque é um dardo envenenado".

Obviamente é mais engraçado na cena em si, com a atuação, o timming, contexto, etc. Talvez não seja muito engraçado pra todo mundo, mas é inegável que há um esforço ali, um estilo.


E é interessante como a comédia não tenta ser perdida, mas desenvolver os personagens, ou explicar certos plotpoints. Que é o correto a se fazer, aliás, mesmo numa comédia nonsense. Eu ainda me acabo de rir com a cena do Liu explicando pros policiais que ele foi sequestrado por sereias.

E nem é spoiler, tá no trailer do filme, vão se lascar.


E outra coisa que me chamou a atenção foram as atuações. Os atores conseguem entregar seus personagens de uma forma carismática e interessante. Liu começa o filme como um esteriótipo do Homem de Ferro e termina completamente diferente, há uma evolução gigantesca em seu personagem; Sham é uma sereia inocente, bonita, e traçando um certo paralelo com a Pequena Sereia, não consegue matar o seu amado. Isso causa com que o Polvo, líder do povo-sereia, não tenha exatamente ciúmes (se ele era apaixonado por Sham, nunca fica exatamente claro), mas obviamente cria sentimentos e pensamentos conflitantes assim que Sham mostra fraqueza. E esses três atores conseguem passar tanto a leveza necessária de uma comédia, como cenas mais pesadas de um drama.


Lá pro terceiro ato, o filme se torna estranhamente sombrio. Aliás, se você tem problemas em ver animais sofrendo, são algumas das cenas pra se fechar os olhos. O filme não se intimida em mostrar documentários sobre poluição e maus tratos a animais, mas seu propósito é nobre: é um alerta sobre como empresas e humanos tratam os recursos naturais. O lance dele é perguntar nas entrelinhas algo como "e se os peixes fossem capazes de falar e raciocinar como humanos, como trataríamos o meio ambiente?". E de alguma forma, é uma mensagem passada de uma forma eficaz, sem ficar muito irritante, maçante, ou mesmo óbvio. É algo que não tem tanta atenção, porque o foco mesmo do filme é a comédia, mas o elemento ecológico é integrado ao plot na medida certa, até porque nós passamos a nos importar com esses personagens.


É uma tática que é usada por bons programas educativos e algumas comédias, aliás. Sesame Street e seus derivados usam muito isso: primeiro nós nos apegamos aos personagens, nos divertimos com eles, vemos suas personalidades; só então estaremos abertos a aprender o que eles querem passar. Sitcoms como Os Simpsons também usam isso, nem sempre da mesma maneira porque uma das identidades da série é ter personagens sarcásticos, hipócritas, e muitas vezes, péssimos exemplos no geral. Mas são personagens desenvolvidos através de piadas que satirizam nosso viver e que nós nos divertimos com eles e até nos identificamos com alguns aspectos: então eles botam alguma lição de moral, e então estamos abertos pra ouvir.


Aqui acontece algo mais ou menos assim. Nós gostamos de Sham e das sereias, naturalmente. Eles são as vítimas, sobreviventes, etc. Liu é um personagem muito caricato, mas ao mesmo tempo tem um certo desenvolvimento. Ele tenta mudar pra agradar Sham, mas não sabe exatamente o que fazer pra isso, e bastou um imenso evento pra que ele mudasse completamente, e pra melhor.

The Mermaid é claramente um filme trash. Ele tem a essência do trash, uma comédia pastelã, efeitos que claramente não tentam te enganar, e que só tenta ser divertido. Mas ao mesmo tempo, a comédia pastelã é bem executada, os efeitos mesmo que sejam abaixo do padrão Hollywoodiano ainda são muito competentes, e há uma construção de mundo fantástica no tocante às sereias, como elas vivem, como surgiram, e que até suporta uma mensagem ecológica, que não é passada de uma forma tão clichê porque tu tá ocupado demais se importando com os personagens e rindo feito um abestado.

Pra mim, é perfeito. Tem lá seus problemas, mas é um filme que merece ser visto e revisto. Se for o teu estilo de filme, definitivamente vale a pena dar uma olhada.