Death Note (Netflix 2017)


Falar sobre adaptações é sempre um tópico delicado. A forma que você vê a obra original pode ser diferente do diretor ou produtor que tá fazendo a adaptação ou sequência ou reboot, e ambas as visões podem não refletir o que realmente era a obra original.

E quando você toca no bem mais precioso de um otaku, você nota como eles se comportam como... bem, um otaku no sentido original: alguém que tem um apego muito grande e quase irracional a alguma coisa e que normalmente não tem muita habilidade social.
Esse último ponto se mostra bem quando tu dá uma olhada rápida nas reações da adaptação Netflixiana de Death Note, obra que hoje é nostálgica a muita gente.

E nostalgia costuma cegar.


Com isso dito, o filme em streaming é legitimamente uma boa adaptação da obra japonesa.


Em parte. Ao menos poderia ser, se não fossem alguns problemas. Mas vai por mim, bicho chato de agradar é otaku, parece que essas criaturas vivem em função de reclamar de algo sem muito motivo.

Eu posso reclamar porque EU TENHO UM BLOG! MUAHAHAHA!

...digo, eu tento analisar e ver além do que realmente é posto na tela. Eu sempre tento ver algo de bom nas produções e pelo amor do Don Rosa, eu vou procurar.

Red - Let it Burn.mp3
A história começa quando Light Turner, um moleque inteligente que vende dever de casa, vai parar na detenção por ter se envolvido em uma briga com um bully. Ao invés de virar um Paulo Ranger, ele descobre que o caderno que encontrou mais cedo tem o poder de realmente matar pessoas cujo nome for escrito nele, após encontrar com o deus da morte Norman Osborn.

Light fica apavorado a princípio, mas começa a usar o caderno pra matar criminosos soltos, incluindo o assassino de sua mãe. Logo ele se alia com a líder de torcida Mia, que não bate bem da bola e aparentemente sabe usar melhor o Death Note do que Light.
Até que o caso começa a ganhar notoriedade e o agente secreto do FBI conhecido como L começa a investigar o caso, colocando Light e Mia contra a parede.
Mais ou menos.

"I could squash you like a bug
right now, but I'm offering a choice."
Antes de começar a ponderar sobre algum filme, eu costumo ver segundas opiniões e comparar com as minhas. Eu creio que é um processo importante, porque às vezes eu posso ter perdido algum detalhe no meio do caminho, e ver outros pontos de vista pode ajudar a entender a obra.

Nesse caso, eu tratei muito como um experimento social. Eu conversei com várias pessoas, tanto que gostaram como que não gostaram do filme, bem como vi várias opiniões de... "gente comum" pela internet. E eu acho que entendi o motivo da maioria não ter gostado, e provavelmente não é um bom motivo.

De alguma forma eu vi gente reclamando de white-washing. Porque um filme ambientado nos EUA deveria ser composto de maioria asiática, claro.
Obviamente eu ignorei toda e qualquer comentário que incluísse uma menção a white washing, mas outros fizeram observações bastante interessantes, e que sim, eu concordo em grande parte.


Eu não vou mentir, o filme tem sérios problemas de roteiro. O desenrolar da trama muitas vezes não dá suporte à própria construção de mundo do filme, mesmo desconsiderando ser uma adaptação. Por exemplo, o nome do Watari é realmente Watari. Sem sobrenome, aparentemente. Light usa isso e manda o cara fazer uma viagem através do país e L, supostamente o maior detetive do mundo, não consegue encontrar o cara ou mesmo pensa em acionar logo uma busca por ele, deduzindo pra onde ele iria.

Nem tou dizendo que o L não poderia agir como agiu, porque... Bem, ele tava sob pressão. O que é um ponto interessante, Watari era toda a família que o L teve desde criança, e até é dada uma breve explicação pelo jeito estranho do L (coisa que os filmes japoneses nunca fizeram), e ao mesmo tempo conseguem deixar com ar de mistério. Quando L perde contato com Watari, ele surta e é levado a ações extremas, até mesmo fora do personagem.

Que, sendo bem estabelecido e executado, é um dos elementos que torna um personagem interessante, que não é o que acontece aqui.
O desenvolvimento e debate sobre evidências e teorias é mínimo, dando mais destaque a referenciar a obra original ao mesmo tempo que tenta ser algo próprio.


Há vários conceitos que são ridiculamente interessantes pra uma história nesse estilo. Ryuk ainda é observador, mas um pouco mais caótico que sua contraparte japonesa. O que não deixa de estar fora do personagem, já que mesmo no original vez ou outra Ryuuku incentivava o usuário a usar o caderno. Até porque o único motivo que ele deixou o caderno cair foi pra ver se algum humano faria algo que seria divertido de se olhar, e esse mesmo sentimento tá presente aqui, mas em outra intensidade.

Há inclusive segredo sobre seu passado (dado as mensagens de antigos usuários do Death Note) que não são respondidos. Então sim, o personagem de Ryuk tem uma interpretação condizente com sua origem, mas interessante por si própria.

A dinâmica entre Light e Mia também é uma adição incrivelmente interessante. Light, ao contrário de Raito, é um zé mané medroso, mas que começa a ter mais coragem ao descobrir como usar o caderno. Seus problemas começam quando ele apresenta esse poder a Mia, que começa a ajudar Light nas mortes e elaborações de estratégias.

Obviamente eles começam a namorar porque motivos.


A melhor parte desse relacionamento é que é uma coisa instável. Light é um simples jovem americano padrão de nobre coração que vai todos os dias ao Starbucks pra tomar café, e obviamente ele tenta de qualquer jeito impressionar Mia. A garota, por sua vez, é uma rebelde sem causa procurando algo emocionante na vida. E Mia é vida loka mesmo, inconsequente. E Light sabe disso, e por isso ele tem medo de abrir mão do caderno pra Mia e ela fazer alguma merda grande. Fora que Mia é manipuladora, cê não sabe se ela legitimamente ama Light ou só quer usar ele e o caderno pros seus próprios propósitos.

Te desafio a dizer que essa não é uma dinâmica que funcionaria perfeitamente dentro do universo de Death Note.

Agora, o filme tem sim vários problemas, mas se eu fosse apontar um maior, a mãe de todos os problemas, seria o formato do filme.


Veja bem, os japoneses tiveram dois filmes de aproximadamente duas horas e 20 minutos pra adaptar a história original. E pelo que eles fizeram, até que ficou ok. Muita coisa ficou sem resposta em termos de filme (como explicar o comportamento do L) e houveram plotholes (como a questão do nome da Naomi). O ritmo também é afetado e tudo se sente apressado, ou no mínimo imediato demais.


Tendo isso em mente, adaptar Death Note pra uma audiência nova com um filme de uma hora e meia é um movimento de alguém que claramente não entende o material original.

Death Note é uma história longa por natureza. O jogo mental de gato e rato é algo pra ser apreciado longamente, com exposição de estratégias, com conversas, e desenvolvendo os personagens durante esses eventos.

O filme não tem esse luxo de ter tempo pra desenvolver os personagens ou um arco muito explicado, então fazer praticamente uma história nova foi de fato uma boa opção. O problema é que ainda tá muito preso à história original, quando numa situação dessas, seria mais natural tratar como mais uma história envolvendo o Death Note, baseado no conceito básico de dar poder a um ser humano comum e mostrar o caráter dele.


Até uma das coisas que combina com L, o de tirar uma dedução aparentemente do nada, é mal explorada, porque aqui de fato é literalmente tirado do ar. L chega pra Light e diz na cara dele que ele é o Kira, e fica por isso mesmo. Nenhuma explicação, nada.
Ao menos o Monk explicava depois que a suspeita repentina dele era acertada, pelo amor do Stotomáier.

E sim eu não lembro o nome do Ex Totó Mayer e não vou pesquisar agora vá se lascar são quase 3 horas da madrugada e amanhã eu acordo 7:30.


Aliás, a origem do nome "Kira" é outro ponto mal explicado. Light explica que o nome vem do celta e é relacionado a luz, mas também é japonês pra killer, então "eles vão procurar no continente errado".

Isso nos leva a TANTAS perguntas... No noticiário japonês alguém menciona que "Kira voltou para castigar os maus". Então esse filme se passa no mesmo universo de Death Note original? Então a polícia do Japão sabendo do caso não poderia ajudar a polícia dos EUA? Ryuuku e Ryuk são o mesmo deus da morte? Quais as chances de dois jovens com praticamente o mesmo nome em diferentes opostos acharem o Death Note e usarem ele? E esses jovens serem filhos de policiais? Com um detetive conhecido por L ao lado de um Watari perseguindo-os?

Esses pequenos fanservices são o que tira a suspensão da descrença, bem como imagens de Ryuk como Ryuuku em ukiyo-e, que fazem nenhum sentido e pouco adicionam à trama.


A minha teoria é que a decisão do formato de filme, bem como sua duração é que causou todos esses problemas. Se fosse uma história 100% original sendo contada em forma de série, teríamos mais tempo pra conhecer os personagens, nos apegar a eles, e os escritores não teriam que lidar com amarras narrativas da história original, tendo mais liberdade em como contar essa história.

Mas como cinema é um comércio, os produtores tomaram algumas decisões pra tornar o produto vendável. Vendível. Sei lá.

Como deixar vários elementos do original, mesmo que mal traduzidos (porque que otaku vai querer ver algo novo baseado numa série com personagens tão queridos seus? Como todos nós sabemos, todos os Kamen Riders que não são o Black ou Black RX são moçoilas saltitantes que não tem a macheza do "original"); mas ao mesmo tempo fizeram uma história nova que fosse mais fácil pra nova audiência acompanhar e se identificar, devido às adaptações geográficas. Faça menos, faça um filme ao invés de uma série, é mais barato e é mais garantido que vão assistir.


Em resumo: Death Note é uma bom filme? Sim e não. Ele legitimamente tem conceitos interessantes e inovadores pra franquia, mas são sufocados por más decisões (provavelmente corporativas, talvez nunca saberemos). O que ele tem de bom é REALMENTE bom. A atuação de L e Ryuk é fantástica, bem como a CG do Duende Preto. O ator do detetive consegue passar tanto o autismo de L como consegue mostrar seu surtos e emoções conflitantes com naturalidade. Aliás, os maneirismos de L tão mais autênticos, parecendo menos um desenho animado e mais críveis até mesmo do que os live action japoneses, que seguiam muito à risca o desenho, mas... Soava fora de lugar em alguns momentos.

E sim, o L parece um hacker (influência de Watch Dogs e Mr. Robot), mas se fosse de fato esse a característica do personagem, talvez pudéssemos ter um outro agente de Letra (que é estabelecido existir outros no universo da franquia) com características próprias e igualmente interessante.
Se fosse um detetive hacker que usa as lógicas de programação e criptografia pra solucionar os casos? Imagina que massa!

E ainda sobre atuação: sim, Light grita cartunescamente quando encontra Ryuk. O que o coloca na categoria de "ser humano comum" ao invés de um Gary Stu, como o Raito originalmente era. O que é um update, se me perguntar.

E o print que faz com que Light pareça o Jerry Lewis interpretando o Fantasma da Ópera não deve te guiar em NADA. Aquilo é um print fora de contexto, Light e Mia estavam posando pra fotos do baile. É uma atuação, uma emulação, um embuste.


Se você quer uma adaptação fiel, não vai encontrar aqui. Talvez os live actions supram sua necessidade. Mas se você entende que é uma história paralela, talvez encontre algo que goste aqui, ao menos a linguagem visual tenta emular à do original, só que mais sombria.

Não é um "tão ruim que chega a ser bom", nem um "tão bom que é excelente". É um caso estranho, algo no meio do caminho, que por várias infelicidades, não consegue ser nem uma coisa nem outra.

Vale a pena uma assistida, sem sombra de dúvida.

E como bônus, o então candidato a prefeito
Moroni assinando um Death Note no SANA em 2008.
(via César do Daileon Blog)