A Lenda do Pirata Barba Negra


Quadrinhos são uma coisa sensacional. Não é nem totalmente literatura, nem totalmente filme, é algo no meio do caminho. Ele pode te dar material visual o suficiente, mas ainda precisar de informações vitais em texto, ou numa mistura dos dois de uma forma que o cinema dificilmente consegue fazer de uma forma natural.

Mas infelizmente, muitos quadrinhos acabam passando batido. Resta então que eles sejam adaptados em outros meios pra serem mais notados do povão, como Asterix, Bone, Rocketeer, e Umbrella Academy.

Mas existem casos onde nem o quadrinho é conhecido, e o filme acaba sendo muito menos. É o caso de A Lenda do Pirata Barba Negra.


Ou "A Bandeira dos Piratas", em Portugal. Ou "The Pirates of Tortuga: Under the Black Flag", em inglês. Mas o título original é "Die Abrafaxe: Unter Schwarzer Flagge", que é traduzido como uma das versões em inglês válidas no IMDB como "The Abrafaxe: Under the Black Flag".

...

...ok, deixem-me explicar.



Lá nos anos 70, a revista em quadrinhos alemã Mosaik sofreu mudanças editoriais, uma delas causou a criação de um grupo de moleques que viajavam no tempo e se envolviam em altas aventuras educacionais. Imagine que Doctor Who teve um filho bastardo com a Turma da Mônica, e é mais ou menos isso o Abrafaxe.

Mas o que raios significa "Abrafaxe"? Parece nome de remédio pra caganeira, sei lá. "Abrafaxe" é na real a junção dos nomes dos três moleques: Abrax (o loiro e o que geralmente aparece no meio, o que o torna mais ou menos o líder destemido), Brabax (o inteligente que acaba sendo o moleque com menos personalidade dos três, provavelmente), e Califax, o gordinho que acaba sendo o favorito de quase todo mundo por ser gordo e tonto, mas simpático.

Sim, a junção fica meio quebrada. Abrafaxe tem A-brax, BRA-bax e Cali-FAX, mas também poderia ser ABRA-x e Cali-FAX, ignorando o Brabax, o que só sustenta minha teoria que o segundo personagem geralmente é o mais ignorado do trio. É basicamente o Simon da equipe, o Ranger Azul, o... enfim, cês pegaram a idéia.

Capa recente dos quadrinhos.
...eu acho.
Em algum momento na série em quadrinhos (que aliás, tem ou pelo menos tinha um recorde Guiness pela longevidade), eles estabelecem que os moleques na real não são moleques mesmo, mas... goblins ou algo assim.

...eu sei, é estranho, mas eu tou me guiando por resenhas de usuários do IMDB. Sim, eu tou desesperado a esse ponto. Digo, tem uma página no TvTropes mas eu tou sem saco de ler tudo. Depois de ler páginas de wikia em alemão traduzindo pra inglês eu meio que desisti de aprofundar.

Acontece que embora tenha sido traduzido pra outras línguas (incluindo mandarim), os quadrinhos NUNCA receberam uma versão em inglês, o que só torna mais complicado ainda que quase todas as páginas que eu encontro sobre o filme ou os quadrinhos seja em alemão. Raios, eu quase não acho o maldito filme pra baixar! Eu tive que ver uma versão dublada em português de Portugal, porque eu só achei uma versão em alemão e não existe legenda inglês pra esse filme. 

Apesar de que o filme já passou na TV Cultura, mas provavelmente no mesmo dia de Lua Sangrenta Com Flocos de Chocolate ou algo do gênero, porque achei poucos e antigos registros de exibições desse filme, cuja versão dublada em brasileiro provavelmente se perdeu no tempo.


Então, sim, é um filme ridiculamente difícil de localizar, com informações ainda piores. O que eu pude achar foi usando Google Translate, e eu descobri que houveram MAIS versões animadas dos Abrafaxe.

Não que sejam muita coisa, uma foi uma propaganda russa pra assinatura dos gibis na época (acima), onde alguém viu e achou que seria uma boa idéia fazer uma série de TV dos personagens. Depois que viram a animação, conversas sobre uma versão animada de fato dos personagens apareceram. Um teste foi feito, mas como nós brasileiros iríamos descobrir com as fitas noventistas da Turma da Mônica, personagens 2D num ambiente constantemente 3D numa época que a CG era feita de uma forma basicamente artesanal, não funcionaria que prestasse. John Lasseter testou isso com Onde Vivem os Monstros, e todos sabemos que fim levou.


E eu descobri também que existe uma animação recente baseada nos Digedags, que foram os predecessores dos Abrafaxe.
Ou ao menos é o que eu consigo entender desse vídeo (ou seja, praticamente nada).


Ok, já enrolei demais com a história de fundo. Imagine que, assim como eu, cê pulou nesse filme totalmente cego quanto à história dos personagens, suas origens, e etc. O filme vale a pena? É... Uh... Tapioca.



A história começa quando os três moleques se encontram numa excursão a um museu, mas eles tão entediados. Provavelmente tão lá porque viram a porta aberta, já que não é uma excursão escolar. A menos que esses alunos tenham repetido muitas vezes de ano. O que eu não estranharia, a julgar o conteúdo de cálculo cujas folhas só vão servir pra limpar a bunda.

Eles encontram uma taça asteca feita de ouro, que os leva pro passado porque plot. Eles então se esbarram com um explorador espanhol com a tarefa de encontrar El Dorado, e provavelmente a única pista pra cidade do ouro tá na tigela, que os meninos ainda não sabem como funciona direito. Ainda se juntam à caçada Barba Negra, que desobedece ordens de sua capitã, Anne Bonny, e parte pra pirataria e...

...pera, Anne Bonny lidera os piratas de Tortuga... mas os proíbe de piratear?

...essa é provavelmente a decisão de liderança mais contra-produtiva e retardada que eu já vi! É tipo o McDonald's proibir de fazer batata frita, ou se a Ri Happy parar de vender bonecas de Princesa, ou se jornalistas começassem a apurar os fatos em busca da verdade! Seria um desastre pros seus negócios! Mas que raio, Anne Bonny! Só te perdôo porque tu parece a filha da Jasmine com o Sinbad da Dream Works e é linda demais!

Sério, nem vou reclamar que ela tem cabelo preto ao invés de ruivo.


A narrativa do filme é incrivelmente corrida. Obviamente focada num público que já conhece e acompanha os personagens, em menos de 10 minutos já terminamos o primeiro ato e somos jogados no plot. Embora pareça estranho e até ruim pra nós, é uma decisão que faz sentido. Se fossem se perder demais apresentando personagens que o público-alvo (pequenas crianças alemãs) já conhecem, os primeiros minutos pareceriam maçantes. Seria como fazer um filme da Turma da Mônica tendo que apresentar um por um cada personagem, seria pleonástico demais.

E pra ser sincero, os protagonistas no decorrer do filme tem realmente pouca importância além de agir em momentos determinados pra que o plot avance ou descubramos algo. A sensação é parecida com a de jogar um point and click de... sei lá, Superbook. Cês lembram de Superbook né? Aquela série de desenhos onde crianças japonesas e um robô voltavam no tempo pra interagir com Jesus, Moisés, Davi e outras personalidades bíblicas? Normalmente elas não tinham muito envolvimento na história além de explicar ou observar os acontecimentos.

Digo, ao menos que eu lembre. A maioria dos que eu vi quando moleque as crianças definitivamente poderiam causar confusões espaço-temporais de lascar tudo, mas tinha um de Moisés (ou era José) que fazia mais sentido, que o moleque se escondia a todo custo e o resto da história era uma adaptação bem mais próxima da narrativa bíblica.

O que me lembra, esse desenho teve um reboot recentemente em 3D, e em um dos episódios eles presenciam os acontecimentos do livro de Apocalipse, e eles inclusive interagem com Lúcifer em pessoa.

Então... isso existe.

...

...

...

perdão, eu divaguei de novo. Onde eu tava...? SIM SIM, piratas.


YAR HAR
FIDDLE DEE DEE!

Enfim, os moleques permanecem relativamente passivos durante a maior parte do filme, o que parando pra pensar é até justificável. Eles sabem que alterações no passado podem repercutir no futuro, se bem que eles literalmente fazem isso em pelo menos dois momentos e nunca vemos o que realmente mudou quando eles voltam pro presente. Então... qualé?

As personalidades incrivelmente básicas realmente servem pras crianças se introduzirem no filme, mais ou menos como em Descendentes e outros filmes do Disney Channel, onde os personagens tem personalidade só o suficiente pra que o público-alvo possa se imaginar no lugar deles.

Os personagens que realmente são interessantes são os piratas. Pelo amor de Xavier Atencio, como esses personagens são... interessantemente ok.



É óbvio que os personagens históricos em NADA lembram os reais, a começar que Anne Bonny era ruiva e Barba Negra morreu quando Anne tinha 16 anos. Então cê poderia literalmente trocar os nomes dos personagens por novos e não faria a MENOR diferença. O Barba Negra nem faz seu truque famosos de botar as barbas em chamas.
Eu quis fazer um trocadilho engraçado com "barbas de molho" mas fracassei miseravelmente. Enfim.

Aqui, Anne é a capitã da tripulação a qual Barba faz parte, mas o maluco vive desobedecendo suas ordens, provavelmente porque ELES SÃO PIRATAS MAS NÃO PODEM PIRATE-eu acho que já mencionei isso antes. Mas a dinâmica entre eles até que funciona, exceto que o filme não te dá muita informação sobre o passado de nada nem de ninguém, as coisas simplesmente acontecem e somos levados a aceitar.

Talvez eu esteja exigindo demais desse filme, mas mulheres na Grande Era da Pirataria eram consideradas inferiores e normalmente sinal de má sorte a bordo. Logo, teriam que ter um bom motivo pra Anne ser a capitã feroz da tripulação. Sim, ela é feroz, mas... só isso. Eu digo isso porque eu realmente gosto das personalidades dos personagens. Eu gosto como o Barba Negra é manipulador e potencialmente ameaçador, gosto como Anne Bonny aparentemente aceitou a vida de pirata por falta de opção, e eu quero saber mais sobre esses personagens, seus passados, motivações, etc.
Fora que, até onde eu entendi, um dos intuitos dos quadrinhos era de ensinar aspectos históricos pras crianças, então esses elementos que eu mencionei não só seriam interessante pra narrativa, como ensinariam alguma coisa, como era a intenção original.


A animação também é incrivelmente boa, pegando influências de estúdios da época como Disney e Dreamworks, mas com claramente um estilo próprio devido ao menor orçamento e a cultura alemã pra desenhos. Eu não vi muito desenho alemão (o outro que eu lembro era Os Quatro Aventureiros), mas eu sei que eles tem mania de sempre colocar uma fala de "hã" ou "hum" quando o personagem observa. Algo que se torna irritante em filmes como A Incrível Viagem de Pico e Colombo.

Mas quando a animação é boa, é realmente boa. Em alguns momentos tu nota que os animadores coreanos não sabiam como atuar os personagens e eles fazem movimentos soltos e sem planejamento que soam estranhos, mas normalmente a animação é bem competente. E eu simplesmente AMO o design de personagens aqui. Barba Negra é grande, intimidados, Anne é atlética e mais bonita do que deveria ser historicamente, mas ainda não é um padrão de princesa. Eles conseguiram um meio-termo legal nela. E os moleques que dão nome ao filme tem um visual que ao mesmo tempo respeita o original, mas faz as adaptações necessárias que o meio exige.


Mas ao mesmo tempo, o filme tem potenciais IMENSOS perdidos. Se fosse um filme, sei lá, da Dreamworks, ou mesmo de algum estúdio ocidental menor, com certeza eles teriam aproveitado melhor alguns elementos. Teriam feito o Barba Negra ficar loco e botar fogo na barba durante o clímax, ou explorado mais o passado de Anne, e até usado mais os mutantes. SIM EXISTEM MUTANTES AQUI, e ao menos na dublagem portuguesa (dobragem?) eles são chamados assim. São basicamente piratas que por qualquer motivo se tornaram mais armas do que humanos.

E embora eles sejam executados de uma forma cômica, eles tem um potencial absurdo de criar um mundo novo e interessante (especialmente se, de novo, ignorar os aspectos e nomes de personalidades históricas). Um deles tem um canhão nas costas e é comandado por um pirata chinês baixinho, e outro parece o King Hippo com elefantíase, que usa um barril em cada braço. É sensacional! Parece algo que o Eiichiro Oda faria, mas infelizmente é mal utilizado.

Eu tenho a teoria que eles planejavam em tornar esses personagens e conceito em algo maior, mas por qualquer motivo (orçamento ou tempo) acabaram não fazendo isso. O que é uma pena, eu amei o conceito.


Abrafaxe é claramente um filme pra crianças bem, bem, bem pequenas. Mas é interessante como eles se distanciam do conceito que normalmente se tem de que piratas só vão atrás de tesouros, e mostra os piratas como o que realmente eram: o equivalente europeu do século 18 de Dois Caras Numa Moto. Mas ao mesmo tempo entra numa sinuca de bico ao mostrar uma heroína pirata, que é quando ele se distancia desse conceito. Mas ainda assim, funciona.
Aos trancos e barrancos, mas funciona.

É um filme que mesmo pro mercado original, poderia ter sido melhor lapidado na história. Tem uma narrativa previsível e clichê, mas alguns momentos de ação e a personalidade dos personagens (os piratas, não os personagens-título) são divertidos o suficiente pra que não termine a sessão sem achar que foi uma perda de tempo total.
E de novo, é um filme pra crianças pequenas, então não espere nada de especial. É basicamente Turma da Mônica+Doctor Who-comédia.

Isso é, se tu conseguir encontrar esse filme em algum lugar pra ver. A busca por esse filme é quase tão grande quanto a do próprio El Dorado.

Tem pouca Anne Bonny nesse artigo.
Toma mais Anne Bonny.


Agradecimento especial a Mila, que me ajudou a procurar esse filme.

Esse artigo foi escrito com o apoio do padrinho João Carlos. Caso queira demonstrar seu apoio de forma financeira, se inscreva no Padrim doando qualquer quantia. Caso queira demonstrar seu apoio de forma não-financeira, compartilhe esse post, divulgue nas redes sociais, mande praquela crush que cê tá querendo puxar papo, chega nela e diz "OLHA QUE MASSA OS PIRATA AHAHAHAHA VAMO COMER PASTEL". Caso não queira ajudar, tomara que seu pé seja puxado de noite pelo Holandês Voador e que seu Chambinho venha só a água.