Batalha de Versões - As Crônicas de Nárnia: O Leão, A Feitceira e o Guarda-Roupa


Crônicas de Nárnia. Aquela série de livros que você lê quando Senhor dos Anéis é muito pesada e cansativa pra ti. Ou ao menos eu acho, eu nunca li os livros e o único filme que eu vi foi o primeiro, e levei 3 dias pra ver porque achei cansativo demais. Então esse parágrafo inteiro foi inútil, é.

Entretanto, Nárnia sempre me foi mais atraente, não só pelas analogias cristãs, mas pelo mundo ser mais palpável, com personagens identificáveis, comuns, uma mitologia conhecida mas usada de uma forma mais original; e os livros eu posso com toda a certeza dizer que influenciaram até a forma que eu escrevo nesse papel amassado digital, porque Lewis escreve como que conversando com o leitor.

E como 98% de vocês, conheci a série através do filme distribuído pela Disney, lá em 2005. Mas mesmo naquele tempo, eu fiquei curioso com um certo DVD que eu achei em um prédio calorento e cheio de mofo do Centro de Fortaleza, onde fica a Casa da Bíblia até os dias de hoje. Naquele tempo ainda alugava-se DVDs e VHSsessses, um deles sendo uma versão animada de O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, mas infelizmente eu não pude dar uma olhada porcausa da pressa do dia.

Mas hoje não tou aqui pra falar sobre o desenho dirigido pelo Snoopy; tampouco a série de 1967. Ao invés disso, eu decidi trazer uma batalha mais justa: a minissérie da BBC de 1989 contra o longa da Disney de 2005.

Essa é a Batalha de Versões: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa!


Melhor História

A história narra sobre 4 irmãos: Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia. Eles fogem da Segunda Guerra indo pra uma casa no campo, cujo dono é um professor aparentemente excêntrico. Durante as explorações da mansão, Lúcia encontra um guarda-roupa que a leva a Nárnia, uma terra mágica habitada por seres fantásticos como faunos, bruxas, centauros, animais falantes, e o Seu Lunga.
Ela faz amizade com um fauno chamado Tumnus, que se arrepende de raptá-la pra Feiticeira Branca, e a deixa escapar.

Obviamente seus irmãos não acreditam, mas eventualmente eles também são tragados pelo guarda-roupa e descobrem que são uma peça fundamental no cumprimento de uma profecia que irá libertar Nárnia do domínio de Jadis, a Feiticeira Branca.


A série da BBC, obviamente, tem a vantagem de poder contar cada pedaço da história com calma. Em suas quase 3 horas de duração total, o livro é transposto com uma fidelidade incrível, incluindo alguns elementos que funcionam no livro, mas que em uma mídia visual soam estranhos e cansativos.

Por exemplo, eles constantemente fazem pausas pra refeição, ou demoram pra tomar certas atitudes, ou simplesmente não mostram a urgência que certas situações exigem. Mas provavelmente isso se deve ao ritmo da série e ao estilo narrativo que predominava na época, eu sei lá. Mas em alguns momentos a narrativa fica meio travada por conta dessas coisas.

Ainda assim, a BBC toma algumas liberdades pra dar ainda mais tempo de exibição, como todo o primeiro encontro entre Edmundo e a Feiticeira se dar em uma cabana que ela mesma tinha feito, com sua magia. O que funciona, já tínhamos visto o que ela era capaz de fazer e ela certamente queria agradar mais o moleque.
Outra adição que funciona é os momentos onde Edmundo conversa com sua "consciência". Funciona bem e explica as motivações do personagem.


Entretanto, uma das grandes falhas da série é justamente... ser fiel demais ao livro.

Quem leu o livro sabe, em alguns momentos a narrativa acaba arrastada demais. Uma das situações que exigia urgência era justamente durante a guerra, quando Aslam e as meninas vão libertar as estátuas, e é ridiculamente fiel ao livro. O que não é de se reclamar, eu gostei de ver Aslam soprando as estátuas, de ver o gigante Rumbacatamau. São elementos interessantes. Entretanto, há uma guerra importante sendo travada, nosso interesse vai bem menos pros diálogos de "como a gente vai sair do castelo" e mais pra "mano como tá a guerra?". É como se durante a Batalha de Yavin o filme fosse nos mostrar as cenas de diálogos estratégicos da base ao invés de acompanharmos Luke em sua jornada pessoal no campo de batalha.


Já a versão da Casa do Rato faz um trabalho bem melhor, ao adicionar elementos narrativos que adicionam à história e não desvirtuam a alma do livro.

Vemos os Pevensie escapando de um bombardeio, vemos mais interações entre eles (que, aliás, era algo que faltava MUITO na versão televisiva: os personagens tinham pouco desenvolvimento. No livro é perdoável porque o narrador conta certas coisas que constroem os personagens, mas num meio visual como a série, essas partes fazem falta).

Os relacionamentos entre os irmãos são construídos através de coisas pequenas, valendo o "show, don't tell". Edmundo tem aquele ar de deslocado do grupo, como se tivesse sempre escondendo alguma coisa; Susana sempre tenta pensar racionalmente (no livro, ela é a primeira a dizer pra voltar pra casa quando descobrem a casa invadida de Tumnus, se não me falha a memória); Lúcia é a inocente de bom coração e Pedro tenta manter todo mundo unido, ou ao menos na linha.



A história tenta nos fazer gostar dos personagens, nos importar com eles, e fazer com que sua evolução seja notória. Eu vou entrar em detalhes quando analisar o filme no geral, mas nenhum personagem termina do mesmo jeito que começou, e você sente essa evolução, sente que cresceu com os personagens e aprendeu algo ao final de tudo.

Durante a guerra, nós vemos apenas o que é necessário sabermos, e não se perde tempo quando a situação é de urgência, nem se esquece da necessidade da emoção, ao salvar primeiramente o Sr. Tumnus; ao contrário do livro, onde ele é um dos últimos mencionados a desestatu... desestatuti... Voltar ao normal.


Outras alterações do filme fazem uma certa falta, como os animais festejando o Natal. É uma afronta direta à Feiticeira, mas a alma dessa cena permanece na cena em que ela petrifica a raposa, então não fica aquela sensação de que "faltou alguma coisa".

O filme sabe como focar em Edmundo e em sua personalidade egoísta e sua evolução. Há inclusive uma cena fantástica onde ele encontra Tumnus, e é debativelmente um dos momentos onde começa a cair sua ficha quanto às suas ações. Ele continua a ajudar a Feiticeira, mas hesitante, ele começa a fazer pra tentar salvar outros bichos (como a raposa) e até pra ficar vivo.

A versão da BBC é bem mais fiel à literalidade do livro, mas a versão da Disney é mais competente em contar uma história engajante, evolutiva e ao mesmo tempo fiel ao livro. Ponto pro Rato!


BBC 0 x 1 Disney


Melhores Personagens

Os atores escolhidos na produção Disney são quase emblemáticos, assim como Harry Potter e Senhor dos Anéis. É muito difícil imaginar outros atores nesses papéis, e pode-se  ver porque. Cada ator consegue passar seu personagem com firmeza e segurança, mesmo sendo bastante novos. Pedro e Susana tiveram alguns papéis (Susana mais que Pedro); Lúcia teve sua estréia aqui, e é interessante notar que Edmundo virou o Jason David Frank há um tempo atrás, tendo interpretado praticamente um único personagem durante toda a vida, e feito nada além da franquia que o levou ao estrelato.

Digo, teve dois papéis antes, mas nada muito notável.


E até a forma de escolher foi feita pensando no arco de Edmundo. Skandar foi o último ator a ser escolhido, enquanto os outros já estavam junto há quase um mês, Skandar sempre parecia meio deslocado do grupo, e nem gostava de ser abraçado.
Então o diretor mandava que ele fosse abraçado mais constantemente só pra irritar ele.


Enquanto isso, a versão da BBC sequer consegue acertar a idade dos irmãos. Sério, se não fosse pela cara de abestado do Edmundo, eu podia jurar que ele era o Pedro, por ser mais alto. Suzana é aceitável, Pedro só é baixo demais e não tem aquela presença de líder, e Lúcia é a Mônica.

Provavelmente o visual dela funciona mais pro público inglês da época, mas ela não parece com os desenhos originais, nem exala aquela fofura necessária pra personagem. A atriz faz o melhor que pode, mas ela simplesmente não era a melhor escolha.


Os personagens secundários também estão um pouco fora de si, mas eu culparia o diretor, nesse caso. Tumnus parece um cara legal, mas quando ele encontra Lúcia pela primeira vez... Ele soa amigável, mas não um amigável bom, ele parece mais um pedófilo atraindo uma criança.

É sério!


O Tumnus de Charles Xavier parece genuinamente amigável, mas há um desenvolvimento. Ele começa curioso, gagueja, hesita, mas ao final tenta cumprir sua missão, ao mesmo tempo em que genuinamente se afeiçoa à menina, e se arrepende do trabalho ao qual foi incumbido pela Elsa do mal.


E já que falamos nela, Tilda faz um excelente trabalho como Jadis. Ela é amável a princípio, mas ao contrário de Tumnus, ela consegue passar aquela sensação de manipulação sem ter que piscar pra platéia. Claro que a maquiagem e fluidez da narrativa ajudam a criar essa aura, mas a atriz faz um excelente trabalho em ser sutil, mas se mostrando mais e mais agressiva com o passar do tempo.

Enquanto isso, a versão da BBC nos apresenta o equivalente à Morgana do Castelo Rá-Tim-Bum.

E é epicamente engraçado.

A princípio eu tive dúvida em definir se é uma atuação ruim. Digo sim, é totalmente fora do que o livro descreve, bem como tira a verossimilhança do contexto, uma vez que quando ela encontra Edmundo, ela começa absurdamente agressiva, pra depois ser amável. É uma mudança repentina de humor que é estranho Edmundo não notar.

Mas ao mesmo tempo, ela é tão exagerada que chega a ser engraçada. Mas como a intenção do seriado não é essa, então se sente deslocada. Eu não faço idéia que direção ela recebeu, mas seja lá o que tenha sido, alguma das partes não entendeu bem.


E o resto do elenco é meramente aceitável: os castores, Aslam... Não são memoráveis, exceto pela forma que foram trazidos à vida pelos efeitos visuais. Mas os da Disney são cativantes, identificáveis, e em certa medida, até memoráveis. Eu adoro como o Sr. e a Sra. Castor agem muito como um casal real, vez ou outra implicando com as manias que o outro tem, fazendo piadinhas, mas elogiando-se e cuidando um do outro. São simplesmente fofos demais.

Os personagens da BBC são 8 ou 80: ou são muito ridículos e desnecessariamente exagerados, como Tumnus e Jadis; ou são incrivelmente esquecíveis e fora de lugar, como os Irmãos Pevensie. Disney acerta em trazer um bom equilíbrio e trabalhar nos relacionamentos e diálogos entre os personagens, através das histórias. Mais um pro Rato!

BBC 0 x 2 Disney

E já que falamos dos Castores e Aslam...



Melhores Efeitos Visuais

Ok, pra início de conversa, é bom ressaltar que C.S. Lewis nunca aprovou uma versão televisiva baseada em suas obras. Ele dizia que a forma que a TV fazia não estava à altura de suas histórias, e poderia tirar a fantasia delas. E ao vermos a versão de 67, eu compreendo o que ele quis dizer. Especialmente porque o Aslam anda em duas patas, mas eu tenho quase certeza de que nas ilustrações originais tem uma cena assim então... É.

Ainda assim, a versão da BBC nos brinda com... Pff... Ok, olhem os castores.


...É! Eles são do tamanho de humanos normais!

Agora, os atores fazem um bom papel, tanto os castores como os outros animais antropomórficos, como o lobo. Mas... Eu não sei, é tão fora de lugar que acaba sendo distrativo, mas ao mesmo tempo é uma direção interessante porque parece uma peça de teatro com orçamento grande. Tipo as coisas que a TV Cultura fazia e exibia.

Aliás, essa minissérie toda me lembrou MUITO o Teatro dos Contos de fada, aquele que era apresentado pela Olívia Palito. Ambos foram feitos na mesma época e tinham o mesmo conceito, então eu não posso dizer que Nárnia da BBC não me traz uma certa nostalgia.

Eu AMO efeitos práticos, e mesmo que o resultado seja risível, cê nota que essa era a direção que eles queriam, um meio termo entre peça teatral e série de TV. O que acaba atrapalhando até na narrativa. Tem uma cena que teoricamente era pra dar um susto de leve, quando Edmundo encontra o chefe da polícia secreta. Na versão Disney, funciona. Mas aqui, o efeito de transição de lobo pra lobo antropomórfico é tão lento que o efeito se perde.
Fora os animais feitos em animação tradicional, que destoam do tom geral, mas são carismáticos.

Aliás, cês viram o Aslam?


Ele era basicamente dois caras dentro de uma fantasia, com um deles mexendo o rosto animatrônico.

E sabe quem não aprovaria isso? C.S. Lewis

Ele disse que ter um Aslam como um cavalo de pantomime seria uma blasfêmia pra ele e... Eu... não consigo entender ele, porque o Aslam aqui parece até bem executado. Ele tem graça, tem aquele senso de poder. Só perde mesmo pros rugidos, mas aí é mais com o pessoal de som e criação do boneco, cujo rosto tem menos movimento que as casas do Muppet Show. Mas o dublador faz um bom trabalho trazendo um personagem manso, mas firme.


Aliás, Lewis também disse que quando se bota animais antropomórficos em uma imagem real, sempre acaba sendo uma bufonaria ou visuais pesadelísticos. E... Dado o tempo que ele viveu, é compreensível. O que explica o fato do gerente de direitos sobre as obras só ter aceitado fazer o filme da Walden/Disney quando viu as tomadas de teste com os animais.

E até o Gerardo Mordomo, o Fantasma de Sparta, quando tava fazendo o teste pra Aslam, pergunto "ow isso não vai ser que nem o boneco da BBC não né? Se for eu tou fora".

Pois é.


A vesão de 2005 obviamente tem uma qualidade superior, tanto pela tecnologia da época como do orçamento abastado. Mas ainda assim, alguns animais (especialmente Aslam e os castores) tem falhas muito notáveis de perto. Digo, de longe é de boas, mas quando dá os closes é que notamos como são falsos.

Mas os efeitos visuais integrados aos outros personagens como Tumnus e os centauros funcionam perfeitamente. Esse filme é um dos exemplos de como usar bem uma misutra de trucagens: tanto digital como práticas. E claro, você consegue dizer de olhos vendados quais técnicas foram usadas em cada um, mas não é como se naquele mesmo ano outros filmes não tivessem o mesmo nível técnico.

De cabeça, eu lembro que Star Wars Episódio 3 que tinha um dos melhores efeitos visuais, mas Nárnia tá quase do mesmo nível de King Kong e Fábrica de Chocolate do Burton, então é aceitável.


E todo o design de produção é simplesmente fantástico, é um mundo com elementos familiares mas ao mesmo tempo desconhecido, que é bem a idéia que os livros passam.

Ambas as produções usam conceitos e direções bastante opostas, e mesmo que as fantasias sejam risíveis, a série da BBC ainda tem aquele ar fantasioso nostálgico, que também combina perfeitamente com Nárnia.

Então... empate?


BBC 1 x 3 Disney



Melhor Filme

Esse é um ponto relativamente difícil de debater. Pra alguns, quando mais fiel o filme for ao livro, melhor. Mas eles não entendem que em uma adaptação, coisas precisam ser mudadas, cenas precisam ser cortadas e outras criadas, pra que a narrativa flua melhor. E é um processo difícil fazer isso e ao mesmo tempo se manter fiel ao material de origem.


A versão da BBC é bastante fiel, tendo uma ou duas alterações, mas ao adaptar assim, as marcas do tempo ajudam a datar ainda mais. Não há muito desenvolvimento de personagem, logo não há muito porque torcer por eles. A própria história se sente meio travada durante a batalha, mesmo que eles intercalem as cenas da batalha com Aslam e as gurias libertando as estátuas.

Por outro lado, a versão dirigida por André Filho de Adão desenvolve melhor os personagens, a história ao redor e por trás deles, traz diálogos que exploram o relacionamento entre os irmãos, bem como suas personalidades individuais.


As cenas que foram cortadas estão no filme, mas de uma forma que a história não se sinta desfocada do principal: os Irmãos Pevensie. O arco de cada um é interessante, talvez exceto o de Suzana, que se limita mais a servir de apoio aos outros. Mas não quer dizer que sua presença seja deslavorizada ou que ela viva na sombra dos seus irmãos, ela ao menos tem um momento genuinamente bonito com Lúcia.

Os efeitos visuais são vagamente datados, mas ainda conseguem se sustentar bem graças à narrativa que te deixa interessado e aos atores que conseguem interagir bem com os animais. E detalhe também pra cena de guerra, que é engajante, clara, e fiel ao livro. Aliás, a Feiticeira usar o pelo de Aslam como um manto funciona incrivelmente bem aqui, não sei como Lewis não pensou nisso. É claramente uma forma de humilhação e intimidação ao exército do Leão, funciona muito bem dentro da história.

Ou não, sei lá o que Lewis tinha exatamente em mente quando escreveu o livro.


Enfim, pela sua narrativa, efeitos visuais, e adições e modificações que fazem sentido e ajudam a contar melhor a história, a versão da Disney vence a Batalha!

Agora, eu repito: a versão da BBC tem lá seu crédito por ser mais fiel ao livro. Se tiver curiosidade, vale muito a pena ver, especialmente se você é familiarizado com o estilo de série e efeitos visuais, e quiser ver algo mais literal e próximo do livro.