As Viagens de Gulliver (1939)
Quando Walt Disney começou a fazer animação, já existiam outros estúdios fazendo o mesmo. Mas quando ele se tornou o primeiro a fazer um longa metragem animado, foi chamado de louco. Fez sucesso, e a concorrência foi seguir o louco porque é assim que funciona.
Fleischer, que vinha produzindo desenhos da Betty Boop, finalmente conseguiu um sinal verde pra produzir um longa metragem com a Paramount, baseado no livro As Viagens de Gulliver. Uma história conhecida e que dá espaço pra interpretaçõe criativas.
Walt inclusive adiou o lançamento de Pinóquio pra não concorrer diretamente com esse filme. E também falou que os animadores reserva dele poderiam fazer um filme muito melhor.
Tão ruim assim? Vamos descobrir.
A história começa com o náufrago Gulliver, que ao contrário do que se espera, não é um menino magrelo com um topete loiro. Na real, ele parece o Príncipe Valente se ele tivesse o rosto do Eddy Wally. Aliás, o próprio Eddie tinha o cabelo do Valente então essa referência ficou meio saturada.
E agora eu percebo que minha audiência provavelmente não conhece nem Príncipe Valente nem Eddy Wally. Ao menos não de nome. Dá um Google que cês lembram.
Enfim, Gulliver chega numa ilha, sem saber que é habitada por seres minúsculos, que o prendem usando maquinário pesado improvisado.
Não, sério, em uma noite o bando de homenzinhos de Lego montam as parada tudo e amarram Gulliver como se ele fosse uma buchada de bode e o deitam em uma cama com rodas e o levam até ao rei sem que o desgraçado acorde.
E você achava que conseguia ser sutil ao invadir a base inimiga sorrateiramente no Age of Mythology.
E não, não vou fazer piada com a Nat dessa vez. Baixaria tem limite.
Mas o rei de Lilliput tem outros
problemas pra se preocupar, já que sua filha estava pra ser
prometida em casamento pro filho do rei do outro país lá que tem um
nome tão estranho que eu nem lembro direito, vou chamar de país
Batata até ao fim dessa resenha.
Enfim, a princesa de nobre coração
que vai todos os dias ao salão de beleza clarear o cabelo ia se
casar com o príncipe que de fato parece uma miniatura do Príncipe Valente, mas infelizmente o amor
dos dois encontrou uma imensa barreira: o rei de Lilliput quer que no
casamento toque uma música, e o rei de Batata quer que toque outra,
porque cada uma é tradição em seu respectivo país.
Eu nem terminei a última frase e você
já sabe como isso vai ser resolvido, aposto.
Então o rei de Batata declara guerra
ao reino de Lilliput, e Gulliver é o único que pode impedir uma
catástrofe… Eu acho.
A animação é nada menos do que tu espera da época: é estranha, mas tem um certo ar de magia. Ele tenta usar a mesma fórmula de Branca de Neve, com os personagens mais sérios (Gulliver e o casal real) sendo rotoscopados e mais realistas; enquanto os personagens mais cômicos são exageradamente cômicos e irreais.
O problema é que enquanto Branca de Neve conseguia ter um padrão, tentava dar a sensação de que os personagens pertenciam ao mesmo mundo enquanto se moviam, Gulliver não tenta. Os personagens mais realistas destoam DEMAIS do resto, já que seus movimentos são muito fluidos (e tu nota até a forçação da atuação dos modelos), em contraste com os personagens cartunescos, que vira e mexe não parecem ter peso. Os anões em Branca de Neve pareciam vivos, eles tinham mais personalidade, eles não eram um bando de tolos mongolóides 100% do tempo, tu sentia mais realismo, uma fluidez mais palpável nos movimentos, uma personalidade mais humana e relacionável. Até porque a própria Branca não era 100% fiel à modelo, vez ou outra os animadores se permitiam alguma liberdade pra tornar ela mais interessante visualmente.
Mas mesmo sendo uma bagunça conceitualmente, não dá pra dizer que é ruim. Só faltava talvez experiência pros caras, e o fato de que eles fizeram o filme no meio de uma mudança de estúdio, o resultado é até compreensível, talvez até admirável. Eles fizeram o que sabiam e estavam acostumados a fazer, só acontece que não era bom o suficiente pro que eles queriam.
A Disney passou uns bons anos botando gente que animava pra TV pra fazer longa-metragem, e sabemos o quão bem isso resultou.
E ainda assim, os cenários são belíssimos e combinam bem com o design de produção.
O que mata o filme é justamente o que fez Branca de Neve ser bom até hoje.
Os personagens realistas são tão profundos ou interessantes quanto um figurante de Henry Danger, e nem o roteiro nem as atuações são o suficiente pra que tenhamos vontade de torcer por eles.
Até porque a narrativa em si é ornitorrincamente previsível, o que faz com que uma novela mexicana do SBT pareça Chrono Trigger. Mesmo sendo uma história conhecida, não há personagens memoráveis, ou carismáticos.
Com os anões, tu tinha um desenvolvimento, tu era apresentado a eles com uma música divertida e que explicava como eles viviam. Em uma cena tu já sabia quem eles são, o que fazem, suas personalidades… Ao mesmo tempo que a animação tinha um ritmo agradável, o que os tornam personagens memoráveis até aos dias de hoje.
A Paramount e a Fleischer tentaram emplacar Gabby numa série de curtas solo. Durou 8 episódios.
Acho que isso diz o suficiente.
Os personagens cartunescos acabam sendo monótonos, previsíveis, e relativamente irritantes. Aliás, o mesmo pode ser dito dos personagens realistas, não é por terem menos tempo de tela que eles são menos monótonos.
Eu não sei se poderia descrever o filme todo como “monótono”, porque ele de fato ao menos tenta ser diferente, tenta nos dar um pouco de ação, um pouco de romance, um pouco de aventura… Ele só falha miseravelmente em tudo que tenta fazer.
E o ponto principal que ele falha, não só nos personagens desinteressantes e previsíveis, não só na animação que, embora seja tecnicamente boa, não combina entre si. O filme falha por não tentar contar uma história de começo meio e fim.
Ele é basicamente um monte dos curtas que os Fleischer estavam acostumados a fazer, tentando contar uma narrativa. Agora, veja bem, não é um filme pacote, mas ele meio que se sente um, só que as sequências tem um lugar em comum, mesmos personagens, etc.
Eu compreendo perfeitamente que as cenas lembrem muito os curtas, já que era uma época experimental. Mas Branca de Neve também tem cenas que eram mais no estilo dos curtas, mas não eram frequentes, maior parte do filme realmente tentava contar uma história, ter uma fluidez de narrativa, desenvolver personagens. Usava as cenas estilo curtas pra desenvolver a história (que era bem simples) ou só pra dar uma quebrada no ritmo narrativo.
Viagens de Gulliver não tenta fazer isso, ele pega uma história, joga o ritmo dos curtas onde pode, se der tempo faz algo mais narrativo, e seja o que Deus quiser. Eu nem sei se consigo apreciar direito do ponto de vista experimental, porque é tão desinteressante, tão plano, tão sem sal, que me dá uma agonia.
O estúdio lançou outro filme depois desse, mas Deus sabe como eu não tou a fim de ver tão cedo.
E bom, a Disney hoje é um conglomerado multi-bilionário, enquanto a Fleischer basicamente sobreviver com reprise de Popeye e venda de produtos da Betty Boop.
É meio triste quando tu para pra pensar nisso. Fleischer é basicamente o cara que tem que ir pras festas de família e ouvir “seu colega Valdisnei tá ganhando trinta mil por mês e namorando a Catherine-Zeta Jones, cê nem tá tentando né”.
Bom, com o retrô em moda (e considerando que Betty Boop teve uma minissérie em quadrinhos recente), a Fleischer podia tentar alguma coisa nova qualquer dia desses.
Tenho certeza de que, seja o que for, vai ser melhor que As Viagens de Gulliver.
Agora, se quiser um desenho mais divertido do mesmo estúdio, eu falei sobre Bimbo's Initiation nO Filmante, vê lá.
0 comments