Ducktales 2017 (Season 1)


Lembra quando a Disney praticamente mandava no mundo com menos recursos que hoje?
Eu lembro.

Anos 90, Michael Eisner tava levando a companhia pra tempos de glória e prosperidade que nem o fundador Walt imaginaria. Sucesso atrás de sucesso nos cinemas (com ocasionalmente Pocahontas no meio); expansão da marca com criação de subsidiárias pra competir com Warner e seja lá quem mais tivesse no meio; e a aquisição de propriedades que não só valorizariam a companhia, mas também ajudariam a expandir o reinado de Mickey.

E durante praticamente toda a década de 90 a Disney tinha um bloco chamado Disney Afternoon, que exibia desenhos feitos especialmente pro canal, dos quais tu deve conhecer a maioria pelo Disney Club/Cruj, como Tico e Teco e os Defensores da Lei, Gummi Bears, Darkwing Duck, Gárgulas, e o clássico The Shnookums and Meat Funny Cartoon Show (ou Sardinha e Filé na terra de Carlos Seidl).
Como é? Nunca ouviu falar? Pois é, o desenho é uma desgraça.

Alguns desenhos eram baseados em propriedades já conhecidas e algumas até recentes, como TaleSpin (Esquadrilha Parafuso, que por algum motivo botava parte do elenco de Jungle Book pilotando aviões), Aladdin, Timão e Pumba, Bonkers e Super Patos. Esses dois últimos tem pouco ou nada a ver com as propriedades originais, mas divago.

E recentemente, resolveram pegar um desses clássicos da TV e retrabalhá-lo pra uma nova audiência. Graças a Deus não foi Quack Pack, mas sim...

...

DUCK TALES!

WHOO-OOH!

E como já sabemos, sendo um remake de algo com estabelecimento nostálgico é quase certeza de ser uma desgraça fecal, certo?

...curiosamente, errado.



Enquanto a Disney não faz um remake bom por pura birra e porque é isso que o mercado atual quer (filmes bosta que te lembrem a sensação do filme original, mas tem um processo criativo tão valioso quanto uma fábrica operada por meninos chineses), ao menos alguém na TV parece se importar. Quando anunciaram o remake de DuckTales eu fiquei com uma ponta de medo, por ser um desenho e conceito meio difícil de passar pra TV atual.

Digo sim, Gravity Falls pavimentou bastante o caminho pra desenhos de aventura com o plot maior de mistério, mas o problema não era só esse.

Vai ser como os quadrinhos, onde cada país/artista tem uma lore diferente? Vai pegar história do Carl Barks ou Don Rosa? Se vão, será com a mesma fidelidade ou vão só mencionar e exigir que o público aplauda por motivo nenhum exceto que eles se lembraram que os quadrinhos existem e são bons? Ou eles vão tentar fazer algo totalmente novo mas com o espírito dos quadrinhos e desenho original?

Bom, comecemos pela história.


Scrooge McDuck (ou Scooge McPatinhas, na dublagem. Eu acho. Eu não vi dublado, mas aparentemente não mudaram o nome dele pra Patinhas McPato ou Patinhas McPatinhas, que é um nome imbecil até pros padrões de quadrinhos sobre patos antropomórficos. Mas divago.) é o pato mais rico do mundo e é praticamente forçado a abrigar Donald e seus três sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luizinho. Os meninos tão empolgados em passar um tempo com seu tio podre de rico e aventureiro, e conhecem Webby/Patrícia, que é basicamente uma otaku da história da família McPato.  Se bem que quando tu não tem acesso ao mundo exterior e presa numa mansão de um aventureiro rico, acaba sendo o único hobby possível.
Eles fazem amizade e acabam indo explorar a mansão e suas velharias ocultas, e então liberam fantasmas, monstros, e a Marina Silva.

Scrooge aparece e resolve a marmota toda e descobre que ainda é o aventureiro que tinha esquecido que era, e resolve levar as crianças em suas aventuras pra ajudá-lo.

Sempre podemos contar com Scrooge pra botar crianças pra trabalhar 10 centavos a hora.

E assim os Patos se envolvem em aventuras pela cidade e pelo mundo, enfrentando perigos interdimensionais, bandidos mascarados, piratas voadores, e a Google.
Não, sério, tem um personagem novo que representa os milionários CEOs de corporações; é basicamente o que aconteceria se o Estêvão Trampos fosse dono da Google.


Cada episódio tem um plot fechado em si, mas seguindo o exemplo de desenhos como My Little Pony: Friendship is Magic e Gravity Falls, ele tem um plot maior que percorre toda a série. E o mistério vai ficando mais estranho e mais nebuloso quanto mais tu descobre sobre ele. No final do primeiro episódio, Zezinho descobre que Donald e Scrooge eram parceiros de aventuras, junto com a mãe deles, Della. O moleque então faz um trato de pesquisar o máximo possível com Webby, mantendo isso em segredo dos outros irmãos até que ele tenha uma resposta concreta sobre o paradeiro da mãe deles.


Uma das principais mudanças em relação a praticamente todas as outras encarnações dos personagens (exceto Quack Pack) é que os trigêmeos agora tem personalidades diferentes. Huguinho é o nerd; Zezinho é o aventureiro e impetuoso; e Luisinho é o ganancioso pão-duro. E dá pra diferenciar eles por meio dos designs: Huguinho é o que usa o clássico boné (que remete à personalidade deles nos quadrinhos, onde todos eles são nerds por natureza); Zezinho usa uma roupa mais casual com mangas longas; e Luisinho usa um casaco verde, que remete a dinheiro e provavelmente é uma roupa mais cara. Também serve pra que ele se isole um pouco mais de seus irmãos, é uma roupa mais fechada e pesada visualmente.


Os outros personagens também tiveram um redesign. Alguns mais sutis, como Scrooge, Donald e Launchpad (Bóing), que pouco ou nada mudam das outras versões; mas personagens como Webby e a Madame Patilda foram fortemente mudados. Webby tá menos menininha doce e inocente e mais próxima de uma criança moderna. O mesmo conceito foi aplicado nos meninos, então faz sentido.

Patilda agora tem trejeitos meio militares, mas há um motivo e é explicado num episódio. Não, eu não vou contar o que é, assistam.

Professor Pardal também aparece, mas mais como cientista maluco do que o inventor meio tonto de todas as outras encarnações. Ele não é um cara ruim, só é perfeccionista demais e preocupado em manter o trabalho, o que o torna meio neurótico. É uma mudança bem-vinda, o papel de cientista meio tonto ficou pro cara que se torna o Gizmoduck.
Cujo nome eu não me lembro, mas sei que ele é mexicano. Ou porto-riquenho, sei lá. A mãe dele assiste aquelas novelas do SBT.


Os plots dos episódios, como eu já falei, seguem os personagens em aventuras variadas, enfrentando desde bandidos comuns até seres sobrenaturais com poderes dimensionais. E em todo episódio tu consegue ter uma noção do tipo e tamanho do risco que os personagens correm, bem como a forma de resolver o problema. Geralmente com alguma coisa pré-estabelecida, mas nunca é necessariamente óbvio. Ao mesmo tempo, esses riscos e o tipo de coisa que eles enfrentam ressaltam os relacionamentos entre os personagens, e podemos nos aproximar deles, de suas histórias, personalidades, objetivos e etc.


E funciona, cada personagem é identificável e próximo dos seus conceitos originais, mas são mostrados de uma forma que soe melhor pro público-alvo. Nos quadrinhos de Rosa, foi o retorno dos trigêmeos que fez Scrooge perceber que ele ainda tinha sede de aventura; o clima e narrativa das histórias lembra muito as histórias de Carl Barks, ao menos as que envolviam aventuras e tesouros ocultos; e o desenvolvimento mais profundo das motivações por vezes lembra muito a mesma aproximação de Rosa, mas infelizmente sem o tempo ou momento que os quadrinhos proporcionam.


Algumas mudanças tão bem distantes dos quadrinhos, mas criam situações interessantes. Por exemplo, ter um tesouro templário no Castelo dos McPato vem de uma história de Don Rosa, mas nela os pais de Scrooge já tavam mortos; aqui eles foram acidentalmente amaldiçoados com a imortalidade graças à Scrooge, o que leva a um relacionamento ruim com seu pai. 

Eu queria MUITO que eles envolvessem a irmã de Scrooge e quase o mesmo tipo de relacionamento que ele tem com seu pai, mas o episódio e a história funcionam tão bem quanto, só que com a limitação da série de TV. Nos quadrinhos, essa plotline fazia parte da biografia do Patinhas, cuja história em questão (código de referência D 2003-081 no Inducks) faz parte da Saga do Tio Patinhas, com quase 20 capítulos.
Aliás, eu preciso fazer um artigo melhor sobre esse quadrinho.

Mas o tom dramático que vira e mexe aparece reflete MUITO os trabalhos de Rosa, em especial o clímax no último episódio. Todo o build-up do plano da Maga Patalójika cria uma batalha final visualmente impressionante, mas a personagem não foi tão bem estabelecida como deveria. Talvez uma das poucas falhas da série, eu realmente queria ter visto mais da Maga, ter sentido mais o peso dela na vida do Patinhas, de seus poderes.
Mas a forma que a introduziram na série é fantástica, eu só queria que fosse melhor explorada mesmo.


O estilo de arte é bem distante do clássico, mas ele tem algumas raízes nos quadrinhos italianos, onde os personagens são mais estilizados. Soa mais como um meio termo entre o clássico e o italiano, sem pender muito pra nenhum dos lados. Assim, o desenho consegue ter um estilo próprio que é fácil de animar e ainda é agradável à vista, sem ser detalhado demais. 
Em alguns momentos a grossura do traçado incomoda; ora tá muito grosso ora tá muito fino. Por ser animado no computador, eu acho que os caras reaproveitam frames de outras cenas, ou fazem a cena pensando numa tomada específica e acabam mudando no meio do processo e tem que diminuir o tamanho do personagem, assim o traço fica mais fino do que deveria.

Mas eu sou cata-piolho mesmo. Talvez tu nem note isso enquanto assiste. Ou talvez note porque eu mencionei. Enfim.

A arte nos cenários é magnífica e complementa o estilo de HQ que o desenho tenta passar. Ela tem um aspecto como se fosse impresso em jornal ou papel que antigamente se usava pra quadrinhos, e as retículas só reforçam a idéia.


DuckTales 2017 faz algo que muitos remakes e reboots atuais sonham em fazer: criar suas próprias histórias, seu próprio lore, mas respeitando as obras originais. As referências aos quadrinhos (em especial Rosa e Barks) não tá só em cenas soltas na abertura ou nos detalhes de cenário ou mesmo em botar os Terries e Firmies (aqui como uma única raça) num episódio: tá no coração dos personagens, na forma de contar as histórias, explorar lugares inexplorados, procurar tesouros, valorizar a família. Laços familiares, aliás, são bem enfatizados aqui, especialmente no finale, onde culmina o build-up que vimos de raspão nos primeiros episódios.

O que facilita (ou dificulta) a criação de histórias com esses personagens é que eles foram basicamente projetados pra serem o que a história precisar. O Sexteto Sensacional podiam ser caubóis, havaianos, investigadores paranormais, ou cidadãos comuns. E nos quadrinhos vemos MUITO isso acontecendo, colocando os mesmos personagens em outras situações, outras épocas. É interessante ver como cada mundo se constrói e desenvolve com personagens já conhecidos.

Quadros baseados nos quadros
produzidos por Carl Barks
Ducktales pega personagens praticamente esquecidos (do público norte-americano) e cria um mundo ao redor deles, com carta branca pra fazer o que quiser e tendo personagens já estabelecidos pra brincar. E mesmo assim, o desenho ainda ousa em tentar estabelecer um universo compartilhado de desenhos do Disney Afternoon, ao fazer referências a Darkwing Duck, TaleSpin e Gummi Bears.

Mas ele não te joga a referência na cara e espera que funcione. Ele tenta integrar essas referências dentro do universo do desenho.


Por exemplo, Darkwing Duck é uma série que Launchpad assiste, e estabelece até alguns detalhes, como o ator de Darkwing fazer suas próprias proezas e deixar a câmera rolando. Ou quando Don Karnage simplesmente aparece e é o foco de um episódio inteiro; ou quando mencionam Cape Suzette, mostrando um folheto do lugar com o nome escrito na fonte de TaleSpin. Gummi Bears é algo mais à parte, mas o legal é que tu vai entender o episódio mesmo sem essa referêcia específica.



E não ter que ver o desenho original é um grande ponto positivo. Assim como os quadrinhos, tu pode pegar de qualquer jeito que tu vai se divertir, sem necessariamente estar numa ordem cronológica.

...ok, nos quadrinhos isso varia tanto quanto a bolsa de valores, mas cês entenderam.

Esse episódio todo merece um
artigo só dele, aliás. Me cobrem.
DuckTales 2017 não é exatamente perfeita: alguns episódios são meio monótonos (não ajuda quando o desenho pegou uns hiatos meio sem nexo; se tu ver agora que a temporada tá completa, não vai sentir tanto), mas os que valem a pena, realmente valem e são a maioria. Os personagens tem o mesmo tom dos originais, são identificáveis, o plot de Della é intrigante e surpreendentemente, condiz com os quadrinhos (se foi intencional ou não, eu não sei, mas é provável que sim), e há um respeito e admiração enorme tanto pelo desenho original como pelas obras de Barks e Rosa.


Eu já tava com saudade de ter um desenho BOM com os personagens da casa. Sabe, como House of Mouse. Agora finalmente temos Duckales 2017.
Oh sim, e Legend of the Three Caballeros, que eu não terminei de ver ainda.

Mas vejam Ducktales 2017, é espetacular.

E você achou que eu tava
zoando quando falei nas novelas do SBT.

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