Marionetes (Strings, 2004)


É bizarro pensar como existem histórias que são melhor contadas em uma mídia específica. Half-Life em filme talvez não passasse a mesma sensação de terror, claustrofobia e senso de perigo que um jogo de tiro com um protagonista mudo consegue passar. Da mesma forma, um ser humano comum não consegue fazer todas as proezas físicas de Tarzan a menos que ele seja um ser animado em um mundo animado, pra que tudo pareça uniforme e haja a suspensão da descrença.

Da mesma forma, eu literalmente não consigo imaginar outra mídia que consiga contar a história de Strings, um filme que devia ter muito mais atenção e deveria ser visto por mais gente.



Eu acompanho alguns círculos e influencers de animação, sejam profisisonais da indústria ou não. Desde os Irmãos Bancroft (que trabalharam em filmes lendários da Disney) até o autista que faz longas essays sobre Shrek, e gente que cava pra buscar coisas como Gaither's Pond e Tripping the Rift. E nenhum deles, absolutamente nenhum, fez nada sobre Strings.

Embora o IMDB liste o nome brasileiro como Marionetes (e Portugal deu o nome O Fio da Vida, que é surpreendentemente melhor que nossa versão), é um filme incrivelmente raro de se achar dublado. Eu não achei DVDs nem... Magnetos... desse filme. Não que eu tenha buscado com afinco, mas normalmente quando eu pesquiso por um filme pra escrever sobre, já aparecem propagandas de venda e... locações... do dito filme.

Porque raios esse filme é tão criminalmente desconhecido? Porque ninguém se interessa em comentar mais sobre ele?

Meu objetivo hoje é atiçar teu interesse em ir atrás desse filme, mesmo que seja legendado em inglês. De fato, se quiser pegar fluência no idioma, faça isso a partir de hoje, vai me agradecer um dia.
Tem uns termos do próprio mundo no filme, mas nada que atrapalhe tanto na compreensão da história.


Enfim, a história tem ares shakesperianos, que é um termo que críticos usam pra comparar com as obras trágicas de William Shakespeare e pra parecerem mais inteligentes do que realmente são. O rei se arrepende de todo o mal que causou no reino e deixa uma carta a seu filho, alertando-o pra que não cometa os mesmos erros que cometeu em seu reinado e que tome cuidado com seu irmão maligno. Após terminar a carta, ele comete suicídio, e o tal irmão junto de seu lacaio encontram o corpo, destróem a carta, e fazem parecer que foi um assassinato pelo povo inimigo.

Hal, o príncipe órfão, decide deixar sua irmã no reino e ir em busca de vingança no reino inimigo, que são tidos como bárbaros, sem saber de toda a trama de seu tio maligno e do lacaio de se apossar de sua própria irmã, fora os traidores que o rodeiam.

Contando assim parece uma história comum pro padrão de fantasia sombria. E realmente é uma história bem mediana, com personagens que não são odiáveis, mas que também não te despertam tanto interesse em acompanhar seus arcos narrativos.

Mas o que faz o filme valer a pena e complementar a história, é o design de produção, que a essa altura, se tu não percebeu o que é, provavelmente precisa prestar mais atenção ao seu redor, porque pelo amor do raio, viu.


Ao contrário de outros filmes de fantoches como Muppets, Dark Crystal, e seja lá o que Meet the Feebles foi, o filme usa um método de fantochismo que não é muito usual aparecer em filmes, tanto que ele se auto-intitula o primeiro filme totalmente animado com bonecos de cordas.

O primeiro animado totalmente em fantoches é Dark Crystal, caso esteja se perguntando. São dois métodos diferentes e tecnicamente pioneiros em suas respectivas áreas: Dark Crystal com os fantoches estilo Jim Henson e Strings com os marionetes que a gente vê nas mais altas casas de teatro e cultura, como o Terminal da Parangaba.

É uma forma de animação muito linda de ser vista, porque não é qualquer um que consegue manipular um boneco usando as cordas, mesmo aqueles passarinho de madeira. Um fantoche estilo Muppet ainda é complicado, mas é virtualmente menos complexo que os de Lonely Goatherd. Então, um filme inteiro nesse estilo por si só é um feito fantástico, mas a parte mais interessante é que a história do filme é intrínseca ao meio.


A própria natureza dos fantoches é uma mecânica narrativa que tem pontos importantes na história. Por exemplo, a única forma de matar alguém é cortando a linha que prende a cabeça, e em um momento as crianças emaranham seus fios como brincadeira e pedem pra mãe desembaraçar. Os fios são parte intrínseca desse mundo e causa até alguns momentos mais sombrios e ligeiramente perturbadores, quando para pra pensar.

Tem uma hora que Hal perde a mão num combate, o fio da mão é partido e ele fica sem mão. O general então vai até as masmorras onde ficam escravos e prisioneiros, e manda arrancar a mão de um dos prisioneiros pra implantar no príncipe. E o prisioneiro grita de agonia enquanto acontece a "cirurgia", mesmo que visualmente não pareça dolorido, os berros ecoam pelas paredes do palácio.

Outro ponto é que o material dos bonecos influencia no papel de cada um deles. Os militares são feitos de madeira resistente, enquanto o povo parece ser feito de uma madeira mais rústica e perecível. Hal é coberto de ouro, enquanto sua irmã é uma boneca de porcelana. Há uma atenção aos detalhes tanto conceitual como tecnicamente, porque os bonecos conseguem se expressar bem o suficiente mesmo que suas feições não mudem.


E esse era bem o intuito do diretor, fazer um grande teatro de marionetes numa escala épica, usando o mínimo de computação gráfica possível. Há momentos que aparecem montanhas e grandes cenários, e até a cena final que teve que ser usada umas trucagens mais "trapaça" nesse sentido, mas que nem por isso deixa de ser artisticamente belo. O filme já começa com os titereiros se organizando pra pegar seus personagens, então desde o começo ele quer te deixar bem claro que são fantoches, não tenta esconder isso de ti.

O que não é algo normal, já que quando se usa fantoches eles esperam que a gente acredite que eles são personagens reais: Kermit é um sapo falante, Ludo é um parente distante do Mapinguary, e Tim Curry é um ser humano de carne e osso. Mas aqui eles não escondem o fato de serem marionetes e usam esse fato no próprio world building do filme.

É praticamente uma narrativa de teatro, quando um personagem sai do palco pra pedir opinião da platéia, ou improvisa algo, ou quando a Whoopi Goldberg aparece como Gênio na Broadway. É sensacional.

Até a trilha sonora é feita com uso pesado de instrumentos de... cordas. Harpas e violinos, principalmente, ou ao menos em momentos-chave.


Talvez o motivo desse filme ser muito mais obscuro do que merece é que ele é um filme difícil de vender. A narrativa é arrastada (sei lá se é traço da narrativa dinamarquesa/sueca), a história pode soar maçante por vezes, e os personagens são meio clichês demais. Mas a narrativa visual é que faz o filme constantemente interessante e engajante, cê não sabe o que pode vir na próxima cena, e eles nunca forçam comédia com personagens que deviam ser sérios.

É uma fantasia sombria e pra adultos, mas por ser uma animação de bonecos, normalmente querem vender pra crianças. E não é como se crianças não pudessem assistir o filme. Ele recebeu classificação Livre no Brasil, em países mais sérios a classificação foi pra PG, ou 12 anos pra cima.

Digo, o filme tem uma ligeira sugestão de casamento forçado, que o público mais velho vai identificar facilmente o que é pra ser realmente, mas que crianças também vão entender à sua maneira sem ficarem horrorizadas além do que devem. É um filme sensível até pra mostrar as maldades dos vilões.


As cenas mais pesadas podem assustar crianças pequenas demais, e até "aquela cena que sempre é desconfortável de assistir com mais alguém" é feita com muita classe e até pega vantagem da estética que adotou, sugerindo o ato com as cordas ao invés dos bonecos.

Mas é um filme arrastado demais pra crianças, e visualmente não é muito interessante, a menos que seja uma criança feito eu que tinha gostos extremamente fora da curva, ou que goste de filmes mais sombrios, sem chegar a ser violento, como Return to Oz, Nightmare Before Christmas, etc.

É mais um caso de Fantasia, não é um filme que crianças não possam assistir, mas provavelmente não é do interesse delas ou não as prenda como tenta prender um adulto.

E eu estaria mentindo se dissesse que o filme é perfeito. Não é, mas o único defeito dele é que as lutas não fluem bem de maneira nenhuma, a menos que seja uma guerra envolvendo vários personagens ao mesmo tempo. Mas ainda assim, ele não abusa de ação, porque sabe que não é sua maior qualidade, e investe mais nos elementos fantásticos e na história.


Mas eu faço um pedido, POR FAVOR, tire um tempo e assista Strings. Mesmo que seja uma narrativa maçante às vezes, aprecie o espetáculo visual, aprecie o entalhe dos bonecos, a dificuldade da manipulação, a direção artística, as tomadas de câmera, a fotografia.

É um filme que sabe contar uma história visual e tomar proveito de todos os aspectos da decisão criativa que tomou, e só por isso, vale a pena assistir nem que seja uma vez na vida.

E se algum YouTuber falar desse filme, lembrem-se, vocês viram primeiro aqui, digam que eu mandei vocês pra lá.


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Sério, já viu o preço do salmão? Pois é.




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