O Legado de Tio Walt - Parte 9: O Fim de Outra Era
Disney tava indo muito bem no final dos anos 90. Prestes a adentrar o novo milênio (o qual eu ainda tenho lembranças de propagandas artisticamente confusas das Óticas Boris. Ou era Casa dos Relojoeiros, sei lá), a empresa como um todo via um crescimento espantoso sob a liderança de Michael Eisner.
Embora ele fosse meio loco, era um cara aberto a idéias novas. Por exemplo, ele resistiu a relançar filmes clássicos em VHS, mas deixou lançarem Pinóquio, foi um sucesso, e ele descobriu o segredo mágico que até hoje é a fórmula mágica do estúdio: capitalize em cima de lembranças nostáglicas do público e em histórias passadas de geração a geração por osmose.
E uma vez que a biblioteca animada Disney era basicamente isso (no campo de live actions tinha histórias originais ou menos conhecidas/não-contos de fada), o lance era continuar nessa idéia pros filmes novos, pra refazer a mesma estratégia no futuro.
E mais ou menos como Moana e Frozen fizeram décadas depois, o estúdio pegou uma hitória menos conhecida do público americano.
A Balada de Hua Mulan.
E sim, o nome dela no filme é Fa Mulan, e não Hua Mulan. Eu notei, não precisa me corrigir. É alguma diferença de pronúncia, tipo o sobrenome do Sasuke Uchiha pode ser lido como Uchiwa, já que em japonês às vezes a partícula "ha" pode ser lida como "wa". Meu japonês tá enferrujado, mas eu lembro de detalhes assim.
Enfim.
O filme se baseia no poema sobre a guria que vai pra guerra contra os hunos no lugar de seu pai doente, pobre, velho, com o vigor e a desenvoltura de um orangotango com reumatismo. Mulan é uma chinesinha fofolete e jovem, mas fracassa em ser uma noiva... Ou algo assim, o filme não explica direito. Mas basicamente, Mulan precisa ser uma moça de boa etiqueta e preparo pra trazer honra à sua família.
Ao fracassar miseravelmente, Mulan se sente perdida, sem rumo, e querendo de alguma forma remediar a situação. Mas coisas mais importantes acontecem. Os hunos invadem a china, liderados por Shan Yu, e todos os homens capazes são chamados pra lutar na guerra.
Como já mencionado, o pai de Mulan tem tanta saúde física quanto eu tenho saúde mental, e no calor da situação e vendo que algo precisava ser feito, Mulan toma uma decisão impulsiva e veste a armadura de seu pai e vai pra guerra, se disfarçando de homem pra que não seja executada por traição.
Oh sim, e o Eddie Murphy dubla um dragão.
...so there's that.
O que tu já deve ter notado a essa altura é como o estilo de arte é diferente DEMAIS pra cada longa animado. Os longas clássicos da Era Walt tem um estilo bastante similar, embora com algumas diferenças perceptíveis, geralmente de alguém específico que influencia o estilo do filme, como Mary Blair. Mas se tu botasse Branca de Neve, Pinóquio, Peter Pan e Alice juntos tu veria como tem pouca diferença entre os estilos. Isso se deve ao fato de que a tecnologia e estilo artístico estava sendo desenvolvido, e lá pros anos 60 eles já tavam definindo melhor, o design de produção. 101 Dálmatas com seu estilo mais britânico, geométrico, cartunesco; e Jungle Book mais detalhista, por exemplo.
Cada época e mídia tem seu estilo muito próprio. É uma indústria, afinal; algo precisa ser feito pra facilitar e baratear o processo o quanto puder. Mas se tu pegar, sei lá, Aladdin, ou Pequena Sereia e tentar comparar com Mulan, vai entender o que eu quero dizer.
Na Renascença o estúdio tentou muito mais pegar o clima da história e cultura em que ela se passa, ou ao menos ter uma estética geral muito mais única. Eu amo a direção de arte de Mulan, que segue muito filosofias orientais de disposição de espaço, e eu amo como eles conseguiram fazer isso.
Tem muito espaço aberto, muita montanha, vale, mas tem um charme, um refino diferente. É confortante, calmante, em alguns momentos até minimalista. A forma que os cenários são coloridos, a paleta de cores gentil mas forte quando precisa.
Fora o fato de que é um filme grandioso. Tal qual grandes épicos como Ben Hur, Os Dez Mandamentos, O Grande Mentiroso e Lawrence da Arábia, o filme foca em grandes momentos com grandes multidões, seja de soldados inimigos, cadáveres, ou de civis.
Oh sim, é um filme que pode ser dramático, mesmo com Eddie Murphy. Já chego nele.
Esse é um dos poucos longas animados Disney (até onde eu lembre, o único) a tratar diretamente de uma guerra. E assim como Rei Leão, eles não tiveram medo e te mostraram os corpos dos soldados mortos em batalha. Não é sangrento, mas é chocante o suficiente e é usado na narrativa como uma mudança de tom. Até esse ponto, o filme havia sido uma comédia musical leve que zoa tropes de gênero. Mas mesmo nessa primeira metade teve momentos dramáticos, claro, como o momento em que Mulan decide ir pra guerra.
Aliás, essa sequência é FANTÁSTICA. Se tu quer um exemplo de como Disney deveria fazer seus longas animados com a filosofia clássica mas uma narrativa moderna, essa é a cena. É um momento longo desde a briga no jantar, onde Mulan e seu pai expõem suas motivações de uma forma dramática; Mulan se isola perto da estátua de dragão (que não só representava um dos guardiões da família, que acrescenta um pouco mais de profundidade à cena; mas também serve de foreshadowing) e tenta desviar o olhar da janela onde vê silhetas de seus pais. Ela então decide pegar o armamento de seu pai, deixando o pente que fora usado mais cedo no encontro com a casamenteira no lugar da carta de convocação, pega seu cavalo e vai embora.
Essa cena inteira não tem uma única linha de diálogo, mas tu consegue entender tudo que acontece só pela atuação dos desenhos, que é fenomenal e detalhista, como eu mencionei acima. Fora a simbologia visual: Mulan se abrigando no dragão protetor; seu pai olhando o armário vazio enquanto sua sombra preenche o mesmo, simbolizando que ele que deveria ter ido.
A trilha sonora com sintetizador anos 80 misturada à orquestra dá tanto um ar de epicidade como referencia de leve filmes de artes marciais dos anos 70/80, mas sem se tornar cômico. Além de que tudo isso serve pra propósitos narrativos: Mulan não pode fazer barulho pra não acordar ninguém, então a cena sem diálogo só reforça essa urgência; e a música legitimamente nos passa os sentimentos decisivos de Mulan. É sensacional.
Aí vemos Frozen onde Olaf precisa piscar pro público e dizer "OLHAQUI ESSE É O AMOR VERDADEIRO QUE A PROFECIA/MAGIA/GOOGLE FALOU MAIS CEDO", explicando o que deveria ser o óbvio ululante sem necessidade.
Mas durante boa parte do filme é mais uma comédia musical leve que acaba se tornando muito 90's, mas sem soar clichê ou brega. O que... é compreensível, ainda é um filme família, com foco relativamente forte em crianças. Bora dar um pouco de comédia pra elas, pra quando chegar na parte séria elas sentirem o impacto mais forte. Assim não precisa exagerar nos visuais.
Aliás, esse filme mesmo tem vários momentos solenes e calmos, que também é influência da cultura em que se baseia.
Mas a comédia é estritamente americana.
E... *suspiro*. Eddie Murphy.
Eu nem sei se gosto do Eddie Murphy. Não vi coisa suficiente dele pra ter uma opinião ou ao menos lembrar se eu genuinamente ri com algo dele. Eu lembro de ter visto Um Príncipe em Noa York, mas era dublado e mais pelo roteiro bem escrito. Haunted Mansion é uma desgraça e eu vi mais por obrigação; e o personagem do Eddie era um lazarento. Professor Aloprado deveria ser extinguido. Eu devo ter visto algum stand-up solto por aí, mas... é.
Eddie Murphy dubla Mushu, o dragão guardião da família de Mulan. É um personagem feito especificamente pra vender brinquedo, já que foi projetado com cores básicas que as crianças reconhecem e são atraídas facilmente. Mas também não tá fora do contexto da cultura nem do próprio filme. O palácio do Imperador usa muito as cores vermelho e amarelo, que são predominantes em Mushu, por exemplo.
Mas... Eehh... Eu amo o conceito do Mushu, eu realmente tenho um fraco por personagens sidekick portáteis, como fadinhas, gênios ou até fantasmas em alguns casos, como a Madame Leota no jogo da Haunted Mansion pra PS2 e GameCube. Mushu se encaixa nessa descrição, e embora não seja poderoso de força, dragões na China eram tido mais como criaturas sábias. Logo, ele é mais o sidekick engraçadinho e inteligente.
Mas eu não consigo engolir a performance do Eddie. E eu nem sei se é exatamente culpa dele, a voz combina com o conceito, mas a atuação nunca chega LÁ. Ele tem todo o jeito gingado e rápido de falar, mas nunca soa verossímil, nunca soa como se fosse o próprio personagem e sim Eddie Murphy dublando um dragãozinho.
É diferente de, sei lá, Robin Williams como Gênio, onde mesmo os diálogos rápidos e cômicos tem uma importância dramática no personagem, mesmo que pouca. Vai construindo o personagem pouco a pouco. Quando ele fala as regras pro Aladdin, por exemplo, ele tem uma certa imposição na voz, como se tivesse falando algo importante e sério, mas de uma forma descontraída. Essa descontração é essencial ao personagem, mas ele não deixa de ter noção da realidade e de coisas importantes. Assim, quando precisa ter uma performance mais dramática como quando ele diz que tá se apegando ao Aladdin ou no final quando tem que se despedir e dizer que "não importa o que os outros digam, pra mim tu sempre vai ser um príncipe", tu realmente acredita nele.
Mushu não tem isso, mesmo nos momentos dramáticos. Sempre soa forçado, soa como uma estrela fazendo um cameo, e não como o personagem vivo. É estranho demais.
Ainda bem que o mesmo não acontece com os outros personagens. Mulan tem uma personalidade gostável, assim como a Turma de Três, Li Shang, e até o burocrata puxa-saco do Imperador, eles tem seu papel definido na história e tu consegue gostar de acompanhar eles e seu desenvolvimento. Especialmente do exército como um todo, lembra muito narrativa de shonen, onde tem um ou alguns pontos específicos na jornada de um personagem que ele se torna significativamente mais forte e começa a conseguir fazer as coisas que não conseguia antes.
Tipo Rocky Balboa.
Único problema em relação à narrativa é a própria Mulan, que acaba... muito plana. Ela vai pro exército, arrisca a vida pela honra da família e pelo país, mas eu não lembro em nenhum momento ela se tocar do que ela fez. Nenhum momento onde cai a ficha, onde ela fica "ai meus ancestrais que que eu fiz" e aí entraria o Mushu pra botar senso nela "você não veio pra tão longe pra se deixar vencer bora lá campeã". De novo, nesse momento o filme acaba focando mais na comédia da Mulan tentando se misturar ao exército. Tem momentos engraçadinhos, mas... eh.
Eu gosto de Mulan. Amo como a direção de arte é detalhista no ter pouco detalhe, como eles conseguem captar espaços naturais da China bem como a arquitetura, amo como as fumaças tem um estilo muito forte de pincelada chinesa. Embora algumas piadas não tenham envelhecido tão bem como deveriam, outras são cômicas o suficiente e até são ligadas na narrativa.
Amo o avanço técnico, ao fazer cenários 2D soarem como 3D com um conceito relativamente simples (basicamente puxar uma imagem 2D o suficiente pra criar tridimensionalidade; algo na prática parecido com a câmera multiplano) e as técnicas e gambiarras pra fazer multidões.
A falta de referências pop também é super bem-vinda, já que nem encaixaria no contexto. Fora que Eddie Murphy não tem o mesmo calibre de Robin Williams pra fazer isso direito. Mesmo com a falta de profundidade em Mulan, ela funciona tão bem quanto outros personagens de contos de fada, e é simpática o suficiente; além de seguir a linha de ser mais um modelo a ser seguido do que realmente um personagem complexo. Ela é impulsiva, mas tem força e inteligência o suficiente pra seguir no plano (ou improvisar) até a vitória.
É só um ponto meio baixo comparada a outros personagens protagonistas recentes, como Aladdin, Ariel e Simba. E fica meio deslocado num filme legitimamente bom, ao contrário de Pocahontas que tinha os mesmo problemas, mas o filme também era um caos então meh.
Eu já tava encerrando essa parte, mas lembrei das músicas. E lembrei que eu não lembro das músicas. São bonitinhas e dá pra cantarolar umas melodias vez ou outra, ok. A única música que realmente importa é
LET'S
GET DOWN
TO BUSINESS
TO DEFEAT
THE HUNS!
Mulan é um filme lindo visualmente e com personagens cativantes e uma narrativa que consegue dosar comédia familiar com os horrores da guerra sem sair do family-friendly. É um feito e tanto, se me perguntar.
Also, o Sr. Miyagi dubla o Imperador.
Sem mais perguntas.
Antes de irmos pro próximo filme, é impossível não mencionar a treta entre Disney e a Dreamworks. Ou, especificamente, Jeffrey Katzemberg.
Vejam, Katzemberg nesse tempo acabou agindo como aquele moleque mimado bully que te humilha publicamente só porque ele pode, e se tu revidar, faz questão de arquitetar um plano maquiavélico maior que o primeiro só pra mostrar que pode.
Antes mesmo de lançar Toy Story, Lasseter tava tão confiante que o filme seria um sucesso, que já começou a desenvolver Vida de Inseto com sua equipe. E mesmo que Jeffrey tenha saído da Disney de uma forma amarga, John achou que não tinha problema em contar alguns segredos pro Zeca Urubu da animação. "Se Toy Story for o sucesso que eu imagino, animação 3D vai ser que nem filme espacial quando saiu Tauó", dizia John. "Tá, mas quando que cês vão lançar o Vida de Inseto?", perguntava Katzemberg, que já tinha botado em ação a produção de um filme em CG sobre formigas.
O lance é que a Dreamworks tinha essa rivalidade com a Disney desde a sua fundação. Katzemberg sempre quis fazer uma versão Disneyana de Os Dez Mandamentos.
Porque É CLARO que fazer uma animação bíblica pelas lentes da Disney é uma ótima idéia.
Eisner sempre rejeitou, graças a Deus. Mas quando Katzemberg fundou a Dreamworks com Spielberg e o outro cara lá, ele finalmente pôde fazer o tão sonhado épico bíblico animado musical.
Aí a Disney botou Vida de Inseto pra estrear na mesma semana de Príncipe do Egito.
Katzemberg disse "ah, é mesmo?" E jogou a estréia de Formiguinhaz pra 5 meses antes de Vida de Inseto, e rumores dizem que ele até prometeu bônus pra equipe pra terminar o filme antes do tempo. Lasseter nunca desconfiou de Jeffrey constantemente perguntando quando eles iriam lançar Vida de Inseto e até alguns detalhes do plot.
Já sabemos da falta de tino social de Lasseter. Faz sentido.
Esse lance de ter plots e conceitos incrivelmente semelhantes acabou sendo uma constante na história do estúdio, mas depois falamos disso.
Katzemberg alega que o roteiro de FormiguinhaZ veio de um animador antigo, mas... É, não convence. Bibbidi-Bobbidi-Bullshit.
Ok, esse é o backstory. Eu não vejo Formiguinhaz desde moleque, vi MUITO, tinha gravado em VHS e achava surreal que tivesse outro filme CG sobre formigas, achava que Vida de Inseto era o único. Talvez daí que tenha vindo muito do meu gosto por essas coisas estranhas mas familiares. Enfim.
Eu só lembro que eu gostei mais de Vida de Inseto por ser menos realista. Sei lá, a fotografia de Formiguinhaz acaba meio escura demais e confusa em alguns momentos, e o roteiro mesmo me soou meio vazio. Sei lá.
E Vida de Inseto?
A história conta sobre uma colônia de formigas que é constantemente assaltada por uma gangue de gafanhotos. Flik, o inventor fracassado da vila, resolve sair em busca de insetos guerreiros que possam defendê-los dos gafanhotos. Ele encontra os tais insetos, mas descobre que eles são na real insetos de circo, cujo termo eu juro que deve ter algum trocadilho em inglês mas eu não consigo achar.
Os palhaços tentam desistir, mas tal qual aquele filhotinho de jaguatirica que tu adotou, não consegue mais largar a vila e resolvem ajudar Flik num plano que não precisará envolver luta. Flik conseguirá se virar com os insetos de circo sem que a verdade venha à tona?
Plots de "revelação do mentiroso" são tão previsíveis quanto um episódio de Peppa Pig?
A história tem muita influência dos filmes Os Sete Samurais e Sete Homens e um Destino. Em ambos os filmes há uma vila perseguida por uma gangue, e que contratam samurais/pistoleiros pra defendê-los. É um plot comum no gênero, tem um filme do Terence Hill com o Bud Spencer que tem a mesma idéia. Vida de Inseto adiciona um twist interessante, ao tornar os equivalentes a samurais/pistoleiros em artistas de circo, e o mal-entendido que isso tudo gera.
E eles são os melhores personagens do filme, os mais memoráveis, os mais engraçados. Um dos melhores momentos do filme é a descoberta deles de como a vila imagina que eles vão derrotar os gafanhotos. As expressões, o timming, tudo é feito de forma precisa, que torna essa a cena mais engraçada do filme.
Talvez... as únicas cenas engraçadas.
Por algum motivo, o filme não envelheceu muito bem. Enquanto Toy Story lida com personagens e situações mais universais e tons de cinza, Vida de Inseto tenta fazer uma história mais preto no branco, com um herói e vilão bem definidos. O que não é ruim, e talvez a Pixar estivesse querendo recuar um pouco pra não arriscar demais e não entregar algo bom.
Mas... é. Acaba envelhecendo mal o filme. A comédia dele é um pouco mais comum, e há poucas piadas que realmente se salvam. Flik é um personagem que já vimos tantas vezes que... Eh. Ele é aquele cara comum que só quer ajudar sua comunidade, mas atrapalha mais do que ajuda.
O que ironicamente torna ele mais interessante de acompanhar é, ironicamente, o plot de "revelação do mentiroso". Normalmente acontece quando o protagonista mente pra conseguir o que quer, e tenta encobrir a mentira o máximo que pode, até que uma hora ele tem que revelar e sofrer as consequências disso (ou sofrer tentando encobrir a mentira).
Tipo O Espanta Tubarões e Os Sem Floresta.
Mas em Vida de Inseto há um pequeno twist que torna Flik mais simpático: foi tudo um mal-entendido. Ele achou que o grupo eram guerreiros, e ao conversarem em termos genéricos, cada lado entendeu o que queria (Flik entendeu que eles iriam lutar e eles entenderam que as formigas iam dar uma festa com os gafanhotos e queriam entretenimento).
Só no meio do filme que Flik vai perceber a merda que fez e tenta encobrir tudo e até planeja o escape dos insetos de circo sem que eles precisem lutar. A partir daqui tu começa a torcer mais pelas formigas e que o plano dê certo, mas os momentos antes da construção do pássaro podem soar meio lentos. Ao menos soaram pra mim.
É uma história previsível demais, mas mesmo sendo previsível, tem bons momentos. Eu gosto dos insetos de circo, dos seus designs, das suas personalidades. Na real, eu creio que dá pra fazer uma série animada só sobre eles, sem precisar das formigas, com eles em turnê, visitando outras raças de insetos, etc.
Não sei se na época seria viável, mas hoje com a Disney dona do mundo e com sua própria plataforma de streaming, não é mais tão improvável num futuro próximo.
Assim como o roteiro, o visual não envelheceu bem em alguns aspectos. Agora, era uma coisa totalmente diferente do que eles já tinham feito. Pixar trabalhou muito com coisas do dia-a-dia, como casas, quartos, brinquedos, e Listerine. O motivo de terem escolhido Toy Story como primeiro filme era justamente porque a renderização naquela época deixava os objetos com aparência plástica, logo objetos orgânicos como humanos, animais e plantas não seriam o foco do filme.
Aqui temos uma ilha inteira como foco, praticamente, e os efeitos são impressionantes até hoje. A iluminação através das folhas e plantas, a construção do solo de areia, a forma que a água se comporta, e até o pássaro são realistas o suficiente pra que sejam agradáveis de ver.
Mas os modelos dos personagens e as texturas... É, continuam... Estranhas. Eu sei lá, ao menos funcionam e durante a maior parte do tempo tu não pensa nisso, mas em alguns close ups tu nota melhor como a tecnologia precisava de um refino. Alguns objetos maiores também sofrem do mesmo problema de textura de Toy Story, mas são mais raros e acabam meio que fazendo parte do charme do filme.
Era um desafio tremendo comparado a Toy Story, e eles conseguiram fazer o que precisava ser feito, e até hoje a gente consegue olhar pra ele e dizer "não tá lááááá essas coisa toda, mas ao menos é bonito de ver". O que é a diferença de filmes como Magia Estranha, que mostram um poder de renderização e detalhamento absurdo, mas cuja direção de arte se perdeu nos detalhes e constantemente é um filme feio de se olhar.
E ainda assim, kudos pros caras que conseguiram desenvolver uma técnica pra animar e renderizar multidões.
Embora a história, comédia e personagens de Vida de Inseto tenham envelhecido mal, ainda é um filme bom. Tem idéias criativas de como formigas viveriam numa sociedade parecida com a nossa, mas sem soar forçado como o trope sugere (que já foi visto aqui em filmes de Bernardo e Bianca, que também trabalhavam bem esse conceito); personagens carismáticos e um vilão legitimamente assustador, que abusa de sua posição pra oprimir e tirar vantagem de criaturas menores e indefesas, mas que ao se unirem conseguem sobrepujar o abusador sexual.
Cedo demais?
É um filme divertido, belo de se olhar, momentos engraçados e uma moral relevante. O produto final em termos de história e personagem é olimpicamente inferior a Toy Story, mas, como eu disse, talvez eles não quisessem arriscar fazer algo como Toy Story de novo. Até porque Steve Jobs ainda tava à frente do estúdio na época, ele sabe do medo que é fazer um one-hit-wonder.
Cês sabem, quando se tem um único sucesso estrondoso, mas o próximo produto não é tão bom quanto o anterior. Na música isso é bem mais comum.
Ainda é um pedaço importante da história e evolução da Pixar, e ainda é um filme assistível e impressionante do ponto de vista técnico. Vale a pena rever.
O próximo filme é um dos meus favoritos pessoais, e um que eu vi demais quando moleque. E mesmo hoje, continua sendo um filme espetacular. Com algumas falhas, mas ainda assim, provavelmente um dos melhores filmes da Renascença, que elevou o nível técnico ao ápice da harmonia entre 2D e 3D.
Tarzan.
A história nos conta sobre um casal de náufragos com um bebê pequeno, e ao chegar na África acabam sendo mortos por um leopardo. O mesmo leopardo também mata o filho de um casal de gorilas. Graças às Leis da Conveniência Universal, a mãe gorila encontra o moleque humano e o adota, e o cria como um gorila. O moleque cresce sem nunca exatamente se sentir parte do bando, meio que rejeitado de uma forma ou de outra.
Até que depois de virar adulto, uma expedição inglesa chega na África pra estudar animais, e encontra Tarzan e as duas partes passam a trocar informações sobre seu mundo. Irá Tarzan voltar pra sua gente, ou a inglesa fofolete Jane irá ficar na selva com o homem-macaco?
Eu realmente gosto de fazer perguntas óbvias pra tentar criar suspense mas falhando miseravelmente?
...
...não respondam.
A história de Tarzan é uma das mais adaptadas que existem, junto de Drácula. O que a Disney poderia alterar pra torná-la interessante? Primeiramente, o tratamento clássico Disney: simplifica o que puder. No livro, Kerchak é violento e foi o responsável por matar os pais de Tarzan (no filme ele tem a personalidade de outro gorila, Turbat); Clayton é parente de Tarzan; e várias outras peculiaridades que nem vale a pena citar aqui.
Mas pra variar, o que eles simplificaram foi pra que realmente o filme não se perdesse em aspectos desnecessários, e a essência da história original permanece. Tarzan é uma história que, assim como Mogli, embaça a diferença entre homem e animal, mas aqui há um foco maior no dilema do protagonista entre ficar na selva ou ir pra junto dos humanos. O peso aqui é que Tarzan passa sua vida toda sem saber de suas origens, e quando descobre se sente meio que enganado. É uma dinâmica diferente de Mogli.
E o protagonista é complexo. O fato dele não saber que é humano o leva a querer muito mais fazer parte do grupo e ser um gorila como os outros, e o fato de Kerchak sequer o aceitar como filho é algo que motiva Tarzan a se preparar e ser melhor que os outros. A cena onde ele tenta se cobrir de lama e a conversa com sua mãe adotiva é sensacional, nela tem toda as angústias de Tarzan, bem como a forma carinhosa e clara com que Kala trata do assunto com Tarzan, tal qual uma mãe humana faria.
E quando cresce, vemos isso refletido em Tarzan quando ele encontra Jane.
Que, aliás, é uma das melhores coisas do filme. Jane é uma personagem fantástica, ela é a típica dama em apuros, mas tem seus motivos pra isso. Ela tá num ambiente estranho, cheio de perigos, e naturalmente ela puxou a curiosidade do pai, o que a leva a constantemente esbarrar nesses perigos. Ela não é meramente uma Lois Lane que tá no lugar certo e na hora certa e fica em apuros por ser alguém importante (repórter ligada ao Superman, no caso), mas é motivada pela sua própria personalidade, que não muda durante o filme e ainda vemos um desenvolvimento na personagem.
Desenvolvimento bastante vísivel.
Jane foi muito provavelmente a primeira personagem que eu me apaixonei quando moleque, e talvez eu não soubesse na hora, mas com o passar do tempo eu notei melhor os motivos. Não só a personalidade dela é interessante (o que, coicidentemente, bate bastante com a Ariel), mas há um desenvolvimento visual nela, algo que eu amo bastante. Passar personalidade de forma visual num personagem não é fácil, mas esse filme é carregado de semiótica, e não é tão sutil. O que é ótimo pra crianças, aliás. Mas ao mesmo tempo consegue ser sutil o suficiente pra que se encaixe na história.
Por exemplo, quando Jane chega na selva, ela usa roupas típicas de uma dama inglesa, que podem ser interpretadas quase como aquelas esquetes cômicas zoando turistas, cheios de bagagens e sacolas com estampas tipo "EU CORAÇÃO CIDADE". Quanto mais ela passa tempo na selva, a roupa vai mudando, ficando mais leve, seu cabelo vai se soltando, as cores passam a ser mais chamativas no meio da selva (já que os trajes amarelos/verdes podem se camuflar em alguns lugares da mata).
Da mesma forma, o professor é o típico cientista cartunesco e aparentemente bobalhão, mas ele é mais um cara curioso e animado com descobertas científicas do que um tonto.
E Clayton compartilha do padrão de cores do leopardo Sabor, e aparecendo logo depois da morte da mesma, indicando que ele é o chefe final e Sabor era só um mini boss.
Só eu interpreto assim? Ok.
Aliás, todo o design gráfico do filme ressalta essas personalidades dos personagens. Eu amo como Kerchak é grandalhão e imponente, mas ao mesmo tempo ele consegue usar essa mesma imponência pra demonstrar afeto, ou preocupação. Ele é mais ou menos como o Sr. Banks, é um cara preocupado com sua família (ou bando, no caso) mas que no caminho pode tomar decisões e julgamentos errados. Mas ele não é um cara mau, só... debativelmente ainda arrasado com a perda de seu filho.
E a animação em Tarzan também é fenomenal. Os filmes e séries baseado no personagem até então só mostravam ele se pendurando em cipós, mas aqui ele é olimpicamente mais ágil, seus movimentos são rápidos, seus pensamentos estão mais acelerados que eu quando faço brainstorming mental de algum projeto pra daqui a 10 anos enquanto eu tento dormir, e o cenário acompanha o personagem.
E essa mistura da animação 2D de Tarzan com o 3D do cenário, eu considero o pináculo da animação tradicional comercial.
Em imagens é difícil demonstrar, mas farei o melhor que posso. O filme usa um novo processo chamado Deep Canvas, onde os animadores podem fazer um modelo 3D do cenário e colorir o mesmo à mão, dando a mesma sensação que um cenário feito em pintura tradicional ou digital. E não só isso, mas eles poderiam criar um padrão específico e o programa iria reproduzir esse padrão ao longo de, digamos, o braço de uma árvore, economizando tempo e dinheiro com o mesmo resultado.
Lembra que em Mulan os caras pegavam uma pintura 2D e puxavam o cenário em pontos específicos pra fazer parecer 3D? O Deep Canvas é uma evolução disso, e na minha opinião, se a Disney tivesse investido mais nele, talvez hoje não teríamos essa festa de filmes totalmente em 3D de hoje.
Ou talvez não, quando chegarmos na pós-renascença falaremos disso mais a fundo.
O meu ponto é: a animação tradicional 2D é algo sensacional por si só, é análogo aos filmes que usam efeitos visuais práticos. É mais interessante, é mais envolvente (se bem feito, claro), e conseguir harmonizar o 2D com 3D de uma forma que pegue o público de surpresa é um feito e tanto. Houveram outros filmes que usaram essa mesma idéia mas que não conseguiram o mesmo feito, como Nem que a Vaca Tussa, que tem cenas que lembram bastante o teste de John Lasseter pra Onde Vivem os Monstros e Off His Rockers.
Se não acha que a animação é isso tudo, veja de novo a sequência de Son of Man e o finale de Two Worlds. A animação dos personagens por si só é espetacular, com ação, emoção e personalidade. Com o cenário que se comporta tridimensionalmente, mas ao mesmo tempo passa o feeling de 2D, é uma mistura sensacional. Que nem fritar linguiça calabresa com shoyu.
Sério, experimentem, fica daora.
Aliás, o layout de cena sendo "ensaiado" em 3D é algo que o estúdio já fez com Bela e a Fera, mas aqui eles elevam o nível de dificuldade, com sequências rápidas e com muito movimento. É espetacular.
As músicas costumam dividir opiniões. Uns preferem o estilo Broadway onde os personagens cantam as músicas, e outros preferem que as músicas descrevam os eventos e sentimentos.
Disney chamou Phil Collins justamente pra tentar algo novo e... Se me perguntar, funcionou. De um modo estranho, mas funciona. É como se tivesse um narrador que só é chamado pra ocasiões específicas, e quando narra ele... canta.
...eu sei, é meio bizarro, mas as músicas descrevem perfeitamente os sentimentos dos personagens e são grudentas o suficiente. Tenho zero problema com elas.
Funcionou em Toy Story, também funciona aqui.
Tarzan é o perfeito equilíbrio entre 2D e 3D, e uma história que não poderia ser contada da mesma forma em live action, devido às acrobacias do personagem. Não só ele tem ação, drama, e desenvolvimento de personagem, mas tem aquelas coisas bobinhas pra entreter as crianças.
Ah, sim, e o vilão morre enforcado nos cipós e podemos ver o corpo dele balançando.
Acontece.
Se ainda não assistiu, assista, porque vale muito a pena. Tem momentos rápidos fantásticos de ver e que merecem uma olhada mais cautelosa, bem como momentos silenciosos e preciosos pro desenvolvimento de cada personagem e do plot (a cena que Kala descobre Tarzan é dramática e sombria, e até um pouco gráfico pros padrões do estúdio. E funciona lindamente).
E eu acabei de descobrir que dois dubladores de Tarzan também dublaram outro filme que já apareceu por aqui: Freddie the Frog.
Vejam Freddie também, mas só pra testemunhar essa bizarrice.
Terminar com essa imagem por motivo nenhum exceto que a Jane é linda. |
Logo após Toy Story, já começou-se uma conversa sobre uma possível sequência. Mas a equipe (e especialmente Lasseter) acabou ficando muito ocupada com Vida de Inseto, e as negociações com a Disney andavam... tensas.
Esse foi o período que a Disney começou a lançar as sequels direto-pra-vídeo, como O Retorno de Jafar. A Pixar olhou e disse "ow, pode ser uma boa idéia", e a Disney "ow verdade faz aí". Mas esbarramos num problema técnico do contrato. O acordo feito entre a Casa do Rato e a Casa da... Luxo Jr.... Era de que a Disney ia financiar e marketear 5 filmes da Pixar, e os lucros seriam divididos entre as duas empresas. Mas só filmes originais, que poderiam servir pra criar atrações nos parques e trilhões de granas em quinquilharias. Toy Story 2, sendo uma sequência, não faria parte desse acordo. A contragosto, a Pixar aceitou.
Não tou com saco de pegar imagem da equipe de produção na época, então vou encher esse trecho de frames mid-action Espero que não liguem. |
Uma equipe foi separada pra trabalhar em Toy Story 2, enquanto a equipe principal terminava os trabalhos em Vida de Inseto. Os executivos da Disney gostaram do que viram, mas a Pixar sabia que o trabalho precisava de um refino nas idéias. O presidente da Walt Disney Feature Animation, Peter Schneider, disse "mano cês são loco, tem 9 meses pra lançar o filme", e Estêvão Trampos disse "9 meses? Segura meu capuccino descafeinado com adoçante e leite desnatado", ao passo que Peter retrucou "seu Trampos, isso é água" e Trampos disse "...a."
Assim que Lasseter voltou da Europa, onde fazia um tour de divulgação de Vida de Inseto, Trampos o recebe com um recado "ow, deixei um presente de boas-vindas na tua sala". Lasseter foi correndo pra sua sala feliz e saltitante como um moleque catarrento numa manhã de Natal, achando ser as escravas australianas que tanto queria. Entretanto, ao abrir o imenso pacote rosa com fita azul no meio de seu escritório, Lasseter encontrou um abacaxi tão grande que mais tarde foi usado como cenário em Bob Esponja.
Resumo da ópera: Lasseter e sua equipe tinham 9 meses pra fazer o filme quase do zero.
O cosplay humano de Buzz Lightyear juntou seus parças Joe Ranft, Andrew Stanton, Pete Docter, e mais uns caras da Pixar pra passar o final de semana na sua casa. Ao ver esse pessoal em sua casa, a sra. Lasseter os recebeu com um "ok, cadê as escravas australianas?", mas ao contrário do que pensava, o grupo estava ali a trabalho e não a lazer. E foi nesse fim de semana que a história que envolvia brinquedos de coleção e um passado desconhecido em torno de Woody, foi refinada e se tornou a história que conhecemos hoje.
Não bastasse essas complicações de início, o processo todo do filme foi basicamente um trabalho de parto. E agora que eu notei que foram 9 meses pra lançar o filme mas eu não tinha pensado nisso antes e desperdicei uma piada. Oh well. A filosofia da empresa permitia que os funcionários tirassem um tempo de folga dentro do próprio estúdio, pra não cansarem física e mentalmente; mas mesmo assim muitos deles continuaram fazendo hora extra devido à paixão (em artistas novos, especialmente) e à pressão da situação. Vários animadores ficaram com lesões nas mãos, e um deles esqueceu de levar o filho na creche. A criança tava no carro e por um milagre foi salva por uma equipe de resgate.
Tava desse nível o stress.
Mas a história que mais te faz lembrar como trabalhar com computador é quase tão estressante quanto ser psicólogo de Muppet, foi quando por um comando descuidado de alguém, o computador começou o processo de apagar todo o filme. Não só apagar, mas APAGAR O MAIS RÁPIDO POSSÍVEL.
Os cara tavam lá trabalhando numa cena e notaram os objetos desaparecendo. Trabalho de quase 30 pessoas, por meses, indo pelo ralo em questão de segundos. Alguém liga pro pessoal das máquinas, que provavelmente estavam tomando sua água do Starbucks tranquilamente, e recebem uma ligação berrante "DESLIGA A MERDA DESSA MÁQUINA AGORA".
Só depois de ligar a tomada dos aparelhos (tipo aquela cena clássica de NSCI onde dois agentes ficam teclando o teclado tentando evitar um ataque hacker) foram ver o estrago. Uma reunião foi feita pra averiguar o próximo passo, enquanto alguns animadores choravam em posição fetal, outros faziam seu testamento escrito com o próprio sangue, e uma voz balbuciava baixinho "e eu achando que tive o ponto mais baixo da carreira na crise de marketing de Corcunda de Notre Dame, eu devia ter ouvido minha mãe e ficado por lá mesmo".
Até que Galyn Susman (que provavelmente tava tentando se afogar num copo de Coca-Cola até perder os sentidos) se lembrou que tinha um backup na casa dela. Ela tinha tido bebê recentemente e levou um backup pra fazer o trabalho de casa. Todo mundo festejou, John Lasseter abriu uma garrafa de São Brás usando a boca da secretária, os animadores organizaram uma dança de quadrilha improvisada, e o rapaz do marketing de Corcunda botou Galyn nos ombros enquanto cantava Topsy Turvy.
Eles então foram na casa de Galyn e botaram os computadores no carro, completamente alcochoados de colchões, lençóis e provavelmente a secretária de Lasseter, levaram pra Pixar e conseguiram terminar o trabalho com lágrimas nos olhos.
Não lágrimas de alegria, de exaustão mesmo.
Ok, esse literal parto pra fazer o filme, e valeu a pena? É ao menos do mesmo nível que o original? Estaria a Pixar só refazendo o primeiro filme?
Não só é do mesmo nível, mas é ainda melhor.
A história mostra Woody sendo roubado numa venda de garagem por um colecionador de brinquedos. Buzz e outros personagens facilmente comerciáveis vão atrás do vaqueiro, que se encontra com outros bonecos de uma série antiga de TV chamada O Rodeio do Woody. O colecionador pretende vender toda a coleção da série pra um museu no Japão, e Woody era o único que faltava. Woody quer voltar pra Andy, mas ele entra num dilema quando é lembrado que Andy está crescendo e logo em breve vai se esquecer de Woody, e vai passar a ter outros interesses; mas no museu ele será lembrado por crianças de várias gerações.
O primeiro filme tentava lidar com temas mais universais, que pudessem ser apreciados por crianças e adultos. Embora fossem temas que pudessem ser aplicados em momentos complexos e reais (seja pra uma criança que acabou de ganhar um irmãozinho e vê toda a atenção da casa no novo membro da família e não mais nele; até as místicas e por vezes incompreensíveis relações de um círculo social), na prática nunca era tão aprofundado. Era mais uma comédia familiar leve com um pouco de drama no meio.
Aqui, temos um passo significativo. Não só estamos falando dos temas já propostos no primeiro filme, mas de uma forma mais abrangente e de uma forma que pode ser interpretada de várias maneiras.
Todo o drama de Jessie que era amada por sua dona, mas foi abandonada quando cresceu, nos faz lembrar de coisas que abandonamos ao crescermos. Não só faz as crianças pensarem nisso (e talvez até incentivar elas a aproveitar melhor essa fase, sei lá), mas também toca os adultos com uma nostalgia não-direta. É muito fácil usar personagens específicos pra criar uma nostalgia forte, mas usar objetos novos baseados em conceitos que talvez não se apliquem a todo mundo (como brinquedos de faroeste), e ainda arrancar o mesmo tipo de sensação tavez ainda mais poderoso, é pra poucos.
Isso funciona porque, no fundo, Jessie não é só um brinquedo abandonado pela dona, é o símbolo de uma época agradável, sem preocupações, onde sua dona e a boneca passavam momentos agradáveis juntas, e a relação das duas era muito parecida. A forma que Jessie descreve sua relação com Emily em alguns momentos pode ser usada vice-versa. É um lance muito inteligente.
Isso tudo muda a perspectiva de Woody, que finalmente vê a chance de mudar de vida ao invés de presenciar o inevitável. O filme realmente expande o conceito original de "o mundo na visão de um brinquedo" com maestria.
E sim, eu choro quando toca When She Loved Me. Se você não chora, seu coração é mais gelado que o castelo da Elsa. De fato, se a Elsa pudesse estar fisicamente em seu coração, ela estaria usando moletom.
Se bem que ela fica estilosa de moletom.
...AINDA ASSIM, VOCÊ É UM SER DESHPREPHZÍVEL!
E o filme não se sente um remake do primeiro, como costuma acontecer com várias sequências. Ele pega o que funcionou no primeiro e tenta fazer algo diferente. Por exemplo, no primeiro filme, Buzz é um desmiolado que acha que é um patrulheiro espacial. Aqui, ele encontra outro Buzz que age como ele agia no primeiro filme, e basicamente pode se ver como ele era.
De uma forma mais cartunesca, talvez. Mas ainda assim.
E os novos personagens são ótimos também. O conceito deles funciona e o filme se esforça pra te convencer que O Rodeio do Woody poderia muito bem ter sido criado nos anos 50 e esquecido pelo tempo. Eu sei que se fosse um moleque abilolado acharia isso.
Cês acham que eu tou zoando, mas eu realmente fiquei EXTREMAMENTE confuso quando eu vi As Aventuras do Sr. Incrível nos extras de Os Incríveis.
E sim, aqui é um dos momentos onde a Pixar (e debativelmente, a Disney) começa a usar o clichê do Vilão Surpresa, tão usado hoje e que basicamente perdeu o sentido. Mas ao menos aqui eles fazem direito.
Eles jogam foreshadows de que o Mineiro é o vilão, mas é de forma bem sutil, coisas como a manipulação verbal, ou algum trejeito que pode passar despercebido. E a personalidade dele muda, o que em alguns casos pode ser um problema (como em Frozen, debativelmente), mas funciona porque ele é um manipulador sem escrúpulos. E na cena de revelação ele muda o tom de voz e seus maneirismos aos poucos, então é mais crível.
A animação também tá exponencialmente melhorada. As texturas tão mais bem trabalhadas, as edges das bocas dos personagens tá menos notável, e houve uma melhora significativa nos modelos humanos. Antes tínhamos só Andy, sua mãe, Sid, Hannah, e alguns figurantes vistos ao longe. (Ainda não sei se a Molly era humana; por mim deixava em observação três dias, se não latir nem miar pode batizar). Aqui temos VÁRIOS humanos como foco, mesmo que sejam figurantes. E os modelos são mais variados e ainda caricatos, não tentam ser realistas.
Al é um exemplo perfeito, já que ele tem muito o design de desenho animado, mas ainda é crível como humano nesse mundo. Aliás, Al foi dublado por Wayne Knight, mais conhecido como "aquele cara gordinho que leva tinta na cara daquele dinossauro que parece um Mudkip em Jurassic Park", e "aquele cara gordinho que era o sidekick do Michael Jordan em Space Jam". Ele também dublou Tantor em Tarzan, acho válido mencionar.
E esse velho é dublado por Jonathan Harris, o Dr. Smith de Perdidos no Espaço. Também dublou o Mantis em Vida de Inseto. |
Também é válido mencionar, embora Al seja o vilão do filme, tecnicamente... Ele cai na mesma categoria que o Sid. O único fato que o diferencia é que ele é um criminoso, ele literalmente rouba o Woody; mas tal qual Sid, no fundo ele é só uma criança que tem uma forma diferente de brincar. Ao invés de destruir, ele quer guardar.
...pra depois revender, MAS AINDA ASSIM, eu acho que é uma interpretação válida. Adiciona uma camada interessante pro personagem, além de ver ele como um claro vilão, coisa que o Toy Story original tinha também, mas quando cê para pra pensar, não é tão preto no branco como parece. O vilão aqui é mais um antagonista, uma barreira a ser passada pela situação.
...situação que ele mesmo criou, mas eu sustento meu ponto. O verdadeiro vilão é o Mineiro mesmo.
E é impressionante como eles tentaram e conseguem na maior parte do tempo criar uma cidade acreditável e cheia de vida. Talvez não tão cheia como eles queriam, mas definitivamente é maior em escala, abrindo espaço pra cenas maiores e mais desafiadoras pros personagens. E eles também conseguem usar os espaços sem humanos a favor do filme, como a grande sequência na loja de brinquedos, que seria argumentalmente impossível se fosse cheia de clientes.
Mas há cenas em aeroportos com muita gente, venda de garagem também, e os cenários novos são detalhados e divertidos de se olhar. E embora nem sempre os prédios pareçam convincentes (em uma tomada específica parece mais uma versão CG de Batman TAS), quando eles acertam, eles realmente te convencem que aquele prédio poderia existir. Bem como folhas, ou pedras, ou a roupa do Mineiro, e por aí vai.
"I am the night." |
Toy Story desafia as convenções da Natureza ao ser de fato uma sequência melhor que o original, expandindo idéias, rimando momentos com ironia (como a cena que o Buzz vê o Novo Buzz pela primeira vez), e entregando um produto legitimamente bom, tocante e que atiça nostalgia em um prazo curto e com um histórico desgraçado de tão ruim.
Oh, sim, e tem uma referência a Star Wars que vem ABSOLUTAMENTE DO NADA, mas que entrega uma piadinha engraçada. Além de deixar a semente pra um universo expandido todo baseado no Buzz, o que só prova que realmente ninguém mais se importa com série de faroeste.
Exceto eu, que via Bonanza quando era pirralho. Mas isso é história pra outro dia.
Toy Story 2 é um filme sensacional e um exemplo do que se fazer com uma sequência. Reveja se faz tempo que não viu.
E infelizmente, essa parte da retrospectiva acaba aqui. Tarzan marca o fim da Renascença Disney, que já bem estabelecida, passaria por momentos de crise de identidade, ao mesmo tempo em que Michael Eisner tomava decisões acertadas, como catástrofes gigantescas, como a Euro Disney, um projeto que não vinha dando lucro como imaginava.
Ano que vem, se tudo correr bem, estarei de volta com essa série de retrospectivas, explorando a Era Pós-Renascença.
Não faço idéia de como terminar esse post, então fiquem com Jackie Chan cantando I Will Make a Man Out of You em chinês.
Aliás, Jackie Chan também dublou Shang em Mulan, além do Fera, e cantou a versão Pop da música tema.
THE MORE YOU KNOW
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4 comments
+Kapan, gostei bastante da resenha!
ResponderExcluirAntes de tudo: recomendo muito você assistir o trailer estendido do Aquaman (é de cair o queixo, principalmente no final).
Gosto muito do filme do Tarzan (tenho que tirar o chapéu para a qualidade da animação) e a minha cena favorita é quando o protagonista escorrega pelos cipós com a Jane.
Quanto a Toy Story 2, uma das cenas mais marcantes do filme ocorre justamente no começo, com o Buzz Lightyear no videogame (é plenamente plausível produzir um filme animado de qualidade baseado nesse videogame e de quebra, expandir o universo de possibilidades para o personagem, bem como o Comando Estelar).
Por fim, uma sugestão: se possível, marcar uma entrevista no canal Bunker do Dio, do Dionisius Amêndola, para falar sobre como você passou a gostar tanto da cultura pop, com especial destaque a Disney.
E-mail para contato: diretodobunker@gmail.com
Recomendo fortemente que você assista a mini-serie de vídeos A Arte de Walt Disney (é um primor de qualidade), que você terá uma ideia do tamanho do esmero que o Dio coloca em seus vídeos.
No mais, continue com o ótimo trabalho e aguardo resposta!
Tarzan todo tem uma animação sensacional, é espetacular demais. É muito o lance daquela frase do John Lasseter, "arte desafia tecnologia, tecnologia inspira arte". Ou algo assim, sei lá, mas a história pedia que fosse animada e os caras fizeram o melhor trabalho possível. Dificilmente vai ter outro filme de Tarzan no mesmo estilo.
ExcluirO jogo de Toy Story 2 é sensacional, aliás. Se não jogou, vá atrás porque vale MUITO a pena. Tem um jogo do Comando Estelar também que... é... Curioso. Não lembro se era BOM, mas era divertido, quase um arcade.
Eu nunca ouvi falar desse canal, mas pelo que eu vi ele só faz entrevista ao vivo, coisa que não posso fazer... É tão fácil assim chegar nele? aheuaheua Mas vou ver essa série aí, eu interessei.
+Kapan, fiquei sabendo que a Disney está planejando produzir uma adaptação live-action do filme Lilo & Stitch (que tenho quase certeza que não chegará aos pés do original e de quebra, poderá irritar vários fãs da animação)!
ResponderExcluirAo meu ver, só existe uma coisa pior do que uma adaptação live-action de Lilo & Stitch (que possui quase 99% de chance de dar errado): um filme musical do Mortal Kombat de 3 horas e meia (obviamente com as músicas entre as lutas). É de colocar medo no público!
Se possível, poderia produzir uma resenha do filme O Calhambeque Mágico, que recentemente completou 50 anos de estréia (assisti alguns trechos do filme), e que conta com a boa atuação memorável do Dick van Dyke e muitos outros atores? Uma curiosidade: esse filme é baseado em um livro escrito por Ian Fleming, o autor dos livros do 007.
Obs: assim que terminar de assistir essa mini-serie de 4 vídeos do Bunker do Dio, poderia produzir uma resenha dessa série, mesclando a análise técnica com o seu bom senso de humor (um dos pontos fortes de suas resenhas) e comparando com as suas próprias resenhas sobre a obra do Walt Disney?
No mais, continue com o excepcional trabalho e aguardo resposta!
Sim, e aparentemente vai ser direto pra plataforma de streaming. A essa altura nem dá pra saber se vai ser bom ou ruim, já que coisa direto-pra-vídeo normalmente costuma ter orçamento baixo... Mas sim é completamente desnecessário, eles nem tão ligando muito mais.
ExcluirE eu pagaria pra ver esse musical de Mortal Kombat se ele fosse self-aware auehauehauehau
Engraçado que eu tava mesmo com vontade de resenhar esse filme um tempo atrás hauehauehauea talvez fique pro ano que vem, tho.
Meeeh eu não escrevo artigo assim, é muito chover no molhoado, sei lá hauehueaue