Pixel Perfect (A Garota Perfeita): O Filme Mais Surreal do Disney Channel
Filmes do Disney Channel tem uma reputação ruim. A menos que seja um relâmpago
engarrafado ou dirigido pelo Kenny Ortega, os filmes produzidos pelo canal
dificilmente tem algum valor real, e quando tem, acabam sendo esquecidos ou
subestimados.
E às vezes, mesmo se tiver algum valor real além do "divertido como um pacote
de Cheetos", ainda tem essa forma de algo super fabricado que não atrai alguém
que poderia gostar do filme.
Mas vez ou outra aparece um filme como Pixel Perfect. Totalmente
despretensioso, mas que a cada curva que toma, te pega totalmente desprevenido
e cê não sabe exatamente pra onde ele quer ir.
Eu andei vendo algumas reviews no IMDB, e elas são muito 8 ou 80, mas eu creio
que nem quem gostou muito nem quem odiou muito compreendeu exatamente todas as
implicações da versão family friendly de Mulher Nota Mil.
É pra isso que eu tou aqui hoje.
Ok, se tratando do Disney Channel pós-2000, é preciso ter as coisas em
perspectiva. A maioria das produções do Canal do Rato tem o intuito de
servir àquela época e demografia específica, de jovens/adolescentes que
querem ser descolados mas não tem idade nem dinheiro suficiente para tal. E
aqueles que cresceram podendo viver esse estilo de vida de algum jeito
provavelmente tem uma cartelinha de fidelidade do psiquiatra.
A maioria dos filmes e séries servem como uma bela cápsula do tempo em
termos de moda, cultura e tecnologia (como o divertido Get a Clue), e outros
tem um nível de carinho que eleva o filme ou série a um nível que não tem
direito (como Phantom of the Megaplex).
Mas a grande maioria dos Disney Channel Original Movies são marcados por um
nível de diálogo e narrativa tão rasos que se não fosse o know how
profissional básico no aspecto técnico, iriam parecer filmes amadores feito
por um Derek Savage da vida.
Se quer um exemplo, veja Rip Girls, que é tão middle of the road que eu não
consegui nem pensar numa única piada decente pra fazer uma review
engraçadinha.
Esse diálogo do Mickey Rooney é provavelmente a melhor coisa que o Disney Channel já fez, aliás.
Eu poderia entrar em mais detalhes sobre a transição de público-alvo do
Disney Channel, mas não é o caso hoje e provavelmente tem um vídeo do
Defunctland mais completo do que eu jamais poderia fazer.
E se você não viu o documentário sobre o jingle do Disney Channel, você
deveria.
Esse artigo vai lidar com alguns spoilers, mas porque eu realmente preciso que
você tenha noção do que raios esse filme tentou fazer e porque ele é uma fora
bola da curva em relação aos seus companheiros.
De maneira nenhuma pense que por eu entregar alguns plot points principais da
história isso te impede de assistir.
Não.
Assista o filme, até pra testemunhar
que isso aconteceu. É praticamente o mesmo caso de Freddie the Frog, um filme
que mesmo que você saiba tudo que acontece, só te deixa mais interessado em
assistir pra ter certeza que isso existe e não é um delírio febril ou um Graggle Simpson.
Pois bem.
Usando a mesma tecnologia de comunicação de Get a Clue. A real pergunta aqui é porque ele espelha a mesma tela pra dois monitores. |
O filme tem como protagonista um moleque que depois faria Phil do Futuro, uma
sitcom que eu não vi mas tem só duas temporadas, talvez eu veja depois daqui.
Como eu não lembro o nome dele, vou chamá-lo de Phil até o fim dessa review,
porque não faz diferença. A melhor amiga de Phil tem uma banda de garagem, que
fracassa constantemente em audições de caça-talentos, mas basicamente porque a
vocalista Samantha não tem carisma o suficiente e não sabe dançar, algo que era o Estilo da Época.
O que não mudou muito de lá pra cá, mas é como poesia.
A banda decide fazer uma busca por uma membro que consiga cantar e dançar ao mesmo tempo, numa cena que parece ter saído de alguma sitcom do canal. Decidido a usar todos os poderes de processamento do projetor holográfico de
seu pai, Phil junta uma pancada de foto de guria bonita com vozes afinadas ripadas da sua coleção de CDs de Eurobeat e cria
Loretta Modem… ou era Modern? De qualquer jeito, nenhum dos dois nomes poderia
se passar por um nome real, mas ninguém da banda estranha isso.
Pra ser justo, a cena de audição pra vocalista da banda é tão cartunesca que
realmente nenhuma delas poderia ter ligado muito.
Aliás, o nome da banda é ZettaBytes. Que coincidência!
Enfim, um ex-rapper-que-virou-empresário descobre Loretta e as ZettaBytes e
começa a investir nas meninas, especialmente depois de descobrir que Loretta é
um holograma, praticamente o artista perfeito, porque é barato e pode guardar
num pendrive.
Só pra lembrar que esse filme é de 2004 e Hatsune Miku de 2007.
Aliás, tem uma referência a De Volta pro Futuro, porque é claro que sim.
Mas aí entra o grande dilema, porque Phil tá apaixonado por Loretta e quer que
ela tome a decisão de aceitar ou não o contrato da gravadora, mesmo com todos
ao seu redor repetindo que ela não existe e não tem querer.
Exceto que ela tem, porque é claro que sim.
Descrevendo assim soa muito como um sci-fi mediano… mas porque meio que é. O
que faz o filme funcionar é o absoluto whiplash tonal que ele sofre na metade
do filme, mas sem mudar o tom de “filme Disney Channel”, o que é um feito e tanto, se me perguntar.
O diálogo é
ligeiramente mais complexo e filosófico, e Phil discute com propriedade sobre
a inteligência e livre arbítrio de Loretta. Claro, ele não vai usar termos
complexos como… livre arbítrio, mas o conceito tá ali.
Me lembra muito o que Monstros S.A. fez com sua narrativa. O filme começa como uma comédia sci-fi, mas ainda é um filme adolescente
com um drama sem ser drama. Cê sabe, aquela coisa do cotidiano sem ser
mentalmente desafiadora, como de costume. Mas aqui, os personagens são um
pouco mais velhos do que a média que o Disney Channel coloca, o que torna os
diálogos um pouco mais desenvolvidos e até filosóficos.
Tem momentos que Loretta pergunta ao Phil como é a chuva, ou como é a sensação
de toque, só pra dar uma idéia.
Phil passa muito tempo negando que tenha sentimentos por Loretta, o que… pode
ser que sim. Ele passa muito tempo com ela, fazendo ajustes e explicando
certas coisas do mundo real pra ela, já que ela é um holograma. É normal que
ele fique mais interessado em mexer no modelo dela e compilar pilhas e pilhas
de códigos que não fazem sentido pra absolutamente ninguém exceto ele, porque
é isso que gente que mexe com computador faz.
Não quer dizer que estejamos
apaixonados pelas nossas máquinas, só que estamos engajados em um projeto e
queremos que esteja… pixel perfect.
HA!
Mas no caso do Phil tem o agravante que Loretta tem um aspecto feminino bonit…
Ela é… É…
…hm. Ok, ela é meio esquisita, mas provavelmente é a maquiagem pra deixar ela
menos natural, mas vamos considerar bonito pros padrões de 2004 no auge da
estética Y2K. Isso é algo que ele ignora até o fim do filme… porque as coisas
mudam.
O aspecto tecnológico do filme é um que toma MUITAS liberdades artísticas,
mais do que seriam esperadas num filme assim. Claro, sempre tem alguma coisa
assim que faz com que nós apontemos pra tela pra dizer “pera não é assim que
funciona”, que sempre é divertido.
Pixel Perfect leva isso a um outro nível.
Vamos analisar algumas coisas. O pai do Phil trabalha numa empresa de
tecnologia, mas falha em desenvolver um produto novo. O filho dele, um
adolescente Disney Channel que talvez não conseguiria diferenciar Python de Atlante, criou um holograma inteligente que consegue reagir ao ambiente e
às pessoas ao redor.
Mesmo com as limitações de não poder sair do ambiente, é uma baita limitação,
porque significa que ela pode andar por todo o ambiente, sem se importar se
algum objeto (como sei lá, uma mesa ou outras pessoas) passassem na frente do
computador que transmite o holograma. Isso sem contar que a regra que o filme
impõe é que Loretta não pode sair do recinto fechado, não importa se for um
lavabo em São Paulo custando um aluguel de 10 mil reais ou o Centro de Eventos
do Ceará. Em teoria, Phil e o computador projetando Loretta poderiam estar no
primeiro andar de um shopping e Loretta no terceiro sem nenhum problema.
Mas não é só isso, porque a Loretta quando buga não é a coisa mais esquisita
desse filme, em termos visuais.
Ok, pra ser mais claro, eu acho que preciso separar o filme em alguns mini-arcos. Temos o começo, onde Phil cria Loretta pra ajudar a banda de sua amiga. Elas são descobertas por um empresário, e eles tentam esconder o fato que Loretta é um holograma. Quando o gato pula da sacola e o público reage positivamente ao fato da vocalista principal ser feita de luzes e modulação de voz digital, o filme agora tenta focar na Loretta como personagem, com coisas que já haviam sido estabelecidas antes.
Ela tem direitos como um ser humano ou é um mero programa de computador? A
maneira que ela reage são pensamentos reais ou são só o resultado de complexos
cálculos de probabilidade?
A conclusão pende pra primeira possibilidade, e o empresário dá a Loretta a
decisão final.
E ela decide fugir pra internet.
Só pra deixar claro que isso é algo que ela já tinha feito antes no filme, mas
sim ela foge pra internet. Loretta, um holograma, consegue entrar na internet
e interagir lá. Pra ser justo, tecnicamente ela é um programa que se manifesta
em um holograma, mas o filme claramente mostra o holograma entrando no celular
com conexão via internet.
E também Megaman EXE foi lançado em 2001, com o desenho indo ao ar nos EUA em
2003.
Porém, a forma que ela entra na internet é completamente anti-tecnológica e completamente irreal, mesmo pros padrões de hoje.
Ela simplesmente estica o braço no monitor do computador e entra na internet. Não é através do modem de internet, do telefone (exceto em uma cena), e nem mesmo através da entrada USB/disquete/wathever.
O design da internet é bem parecido com o que o design da época imaginava que
seria a internet, mas é interessante que tem algumas coisas que acabaram sendo
reutilizadas em Detona Ralph 2, que sim, infelizmente existe.
Mas não só o filme toma esse salto de “holograma” pra “agora sou um netnavi e
tem humanos vivendo na internet”, mas temos o clímax do filme.
E eu já tinha avisado que o artigo seria um imenso spoiler, não me encha o
saco.
Durante uma performance, Samantha acaba se machucando e entrando em… coma?
Nunca deixam exatamente claro, só dizem que ela tá desacordada. Anyway.
Loretta aparece, nota todo mundo deprê, o clima absolutamente tenso e até
dramático demais pro padrão do canal, até que ela tem uma idéia.
A máquina de eletro tá ligada ao cérebro da Samantha.
Loretta (que se mandou por e-mail pro computador do Phil), conclui que ela
pode entrar na máquina de eletro, e assim…
…
Eu sei, cê não consegue terminar essa frase. Seria absurdo demais.
Mas sim, é EXATAMENTE isso que acontece.
Loretta ENTRA NA MENTE DE SAMANTHA ATRAVÉS DA MÁQUINA DE ELETRO.
Porque, veja bem, Loretta é só um programa de computador, e programas nada
mais são do que impulsos elétricos em uma pedra que conseguimos convencer que
consegue pensar.
Assim, temos um diálogo mano a mano (ou… mana a mana… eu quis fazer uma piada
de Even Stevens mas não deu muito certo, me processe) entre Loretta e
Samantha, e é interessante como eles lidam com a dualidade entre essas duas
personagens que não se bicam desde o começo do filme.
E se você achou que acabou por aqui… WAIT! THERE’S MORE!
Loretta consegue acordar Samantha de seu coma, porém… Samantha acorda com
Loretta na mente.
O corpo de Samantha se mexe, mas quem controla é Loretta. Porque? Oras, porque
precisamos dar fechamento ao maior arco pessoal da personagem: ela quer sentir
a chuva.
É um conceito interessante e bem filosófico, caso cê pare pra pensar demais
nisso. Como eu parei.
Tomar chuva é algo comum pra nós, mas pra um ser imaterial como Loretta é algo
espetacular, é se sentir vivo. Loretta podia cantar, falar, interagir, dançar (supostamente, porque a coreografia dela soa mais como um hippie do Cefet sob efeito MD),
se mover, mas nunca sentiu o que era um toque, um abraço, um beijo, um vento
batendo no rosto, e nem a chuva. É parte daquelas coisas pequenas que todos os
humanos experienciam na vida constantemente, mas que nunca paramos pra dar
valor o suficiente.
E Loretta vira um anjo no final, aparentemente, sei lá.
De fato, todo esse final motivou alguém a escrever um texto imenso teorizando se Loretta teria sido uma alma morta que reencarnou como um ser virtual de alguma maneira, supondo até que o gato que Phil cria no começo do filme seja literalmente uma versão beta da Loretta, já que ele vive saindo pela janela e sumindo.
O que... não deveria significar muito, já que seria o caso de recompilar de novo o holograma. Não...?
Eu sei lá, eu não li o negócio todo.
Pixel Perfect é um dos filmes mais esquisitos do Disney Channel, e um dos mais
complexos pro padrão do canal. Quando cê para pra
analisar alguns elementos, ele se torna extremamente confuso, criativo,
caótico, e até à frente do seu tempo.
O conceito de um programa tomar forma no mundo real de algum jeito (pelo menos
como Pixel Perfect faz) só consigo lembrar de cabeça de Tron 2.0 e Tron
Legacy.
Se bem que em Legacy é imbecil e Tron 2.0 faz corretamente. Ok, o conceito de
Legacy é interessante, mas não faz o menor sentido mesmo dentro do universo de
Flynn Lebowski, nem tentam dar uma explicação plausível que possa ser
interpretada.
Eu sei lá, eu meio que dormi da metade pro fim.
Mas ainda assim, Pixel Perfect é um filme Disney Channel que você precisa ver
uma vez na vida. É ligeiramente melhor escrito que outros filmes do canal, que
normalmente só se salvam pelo conceito maior e execução divertida/carismática
(como Luck of the Irish, Phantom of the Megaplex, Get a Clue e Wendy Wu).
Pixel Perfect é mais do que isso, é um filme bem escrito que consegue colocar
muitas idéias complexas de uma maneira palatável ao seu público que só espera
mais uma sessão da tarde, e num ritmo que é bem acochado, sem nunca sentir
muito rápido ou muito lento. Eu praticamente contei os principais eventos
aqui, mas eu te incentivo a assistir, experiencie essa bagunça organizada e
esquizofrênica, vai te fazer bem.
Como última curiosidade, os efeitos visuais do filme foram feitos pela Reel FX. De nome cê não conhece, mas é um estúdio de efeitos visuais que colaborou em filmes como Homem-Aranha 2, Náufrago, Robôs, Encantada, e Rumble.
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