[Mês do Dr. Seuss] Hejji, o quadrinho esquecido do Dr. Seuss


Das três personalidades que mais menciono aqui, Dr. Seuss é provavelmente a que mais permaneceu em seu caminho.

Quando começou a fazer os livros infantis, basicamente não saiu dessa zona, ao passo que Jim Henson tinha uma imaginação extraordinária e sempre buscava refinar seus fantoches, e Walt Disney sempre investia em coisas diferentes e mirabolantes, pra desespero de seu irmão Roy.

Mas com Seuss, sempre é uma surpresa ver que ele mesmo trabalhou em diversas áreas, não só nos livros ou animações. Ora raios, ele mesmo desenhou uma linha de brinquedos e fez uma série de curtas instrutivos pra soldados na Segunda Guerra, acho que não são muitos que podem dizer que trabalharam em coisas tão antagônicas assim.


E é curioso como, apesar dos livros e das charges políticas, o velho Geisel não tenha se aventurado no mundo dos quadrinhos. Parece bem óbvio, e alguns livros tem até um pouco dessa influência, como Green Eggs and Ham, cujo clímax da história se dá exclusivamente por imagens.

Mas hey, eu não estaria escrevendo isso caso ele nunca tivesse feito uma HQ na vida né?

...
Vocês já foram mais espertos.



Dr. Seuss, já assinando como Dr. Seuss, fez ilustrações pra revistas da universidade e propagandas de sua época, sendo até bem sucedido nisso. É uma época e uma faceta interessante de um sujeito que mais tarde viria a ter seu nome associado a rimas alfabetizantes e filmes de qualidade debatível. Nos anos 30, mais especificamente 1935, ele começou a publicar uma tira serializada aos domingos, o que é um feito, considerando que ele não publicava tiras diárias.


A história de Hejji narra sobre Hejji, que segundo um site do tempo em que a internet era mato, diz que ele era aprendiz de gênio. Eu não vejo absolutamente NENHUM sinal disso, a menos que essa informação esteja em outro lugar fora das tiras propriamente ditas. Fora as roupas dele, mas até aí todo mundo nessa tira se veste como se fossem figurantes de O Ladrão de Bagdá.

E tão logo ele chega no país de Baako, ele fica fascinado pela fauna e flora do lugar, como flores cantantes, bodes com barbas siamesas, e tartarugas galopantes. Eu gosto muito de como o narrador descreve o lugar, sendo tão alto que os pássaros tem que pegar carona em outro pássaro pra chegar lá.



Mas Hejji comete o crime de arrancar a flor musical, e é jogado pelo rei do lugar, o Poderoso (Mighty One), aos wombats.
Sim, eles parecem um cruzamento do Grinch com o Horton, isso daria um livro.

Mas o Mighty One ttem outros problemas, como conquistar a Fair One, que se eu traduzir ou irei ofender militantes do movimento negro, movimento das feias, ou jornalistas. Mas ela é a mais bela da terra de Baako, e embora o Mighty One seja rico, poderoso, influente e consiga fazer todos os Fatalities de Mortal Kombat 2, ela não quer casar com ele, a menos que ele consiga baforar em forma de anel.

Pode parecer idiota, mas é uma baita strategy (isso é "estratégia", pra quem não fala grego). Obrigar seu pretendente rico e poderoso a terum câncer de pulmão, pra no futuro tomar tudo que for dele sem precisar de um divórcio. Assisti Chocolate com Pimenta o suficiente pra detectar um golpe do baú.

E sim, a piada é que nunca vemos o rosto dela, algo que é um trope bem comum de comédias dessa época. Acho que o Pica-Pau fazia coisas assim anos depois.


Hejji de alguma maneira escapa de sua prisão, e provavelmente porque os editores ou o próprio Seuss viram que a história não ia avançar com o Mighty One como antagonista, fizeram ele se desculpar com o moleque. Porque ele não tinha nada melhor pra fazer, Hejji se junta à missão do Mighty One pra procurar o presente ideal pra Fair One, como o mel das abelhas barbudas ou penas de uma ave rara.

Se você leu qualquer tirinha em ordem (como coletâneas de Calvin e Haroldo), sabe mais ou menos como funciona a narrativa aqui. Frases curtas, rápidas, e com informação demais pra um diálogo comum, mas que é necessário pra que a ação siga constante e pra que o leitor não se perca no meio do caminho ou faça perguntas demais.

Mesmo assim, a história não se torna maçante ou repetitiva, e os personagens tem personalidades distintas o suficiente pra que não sejam intercambiáveis. Hejji é jovem, otimista, e sempre procura uma solução com o que tem ao redor, como usar um cipó emborrachado e chifres de um animal como estilingue pra se atirar. O Mighty One é pomposo, pessimista, e não quer sequer descer de uma árvore de maneira indigna, o que obriga Hejji a fazer uma escada de tartarugas.

Sim, igual Yertle the Turtle. Tem vários temas visuais que apareceriam de novo em obras doo Dr., como a já mencionada barba univitelina, que seria usada em The 5000 Fingers of Dr. T e numa charge política.



O senso de aventura é presente por toda a história, mesmo que os perigos não soem ameaçadores. Variam de animais que raptam os heróis até elementos da natureza, mas que são contornados de maneiras inteligentes por Hejji, geralmente.

Não é um quadrinho longo, mas dá muito pano pra manga: temos os característicos animais bisonhos e imaginativos do velho Geisel, temperados com aquele world building que só um universitário suspenso de editar o próprio jornal por ter sido pegue bebendo no auge da lei seca poderia. Além das águias que dão carona a outras aves, tartarugas galopantes, abelhas barbadas e cavalos com dentes de ouro, temos o meu favorito dessa saga, o wombat.


Supostamente o wombat é pra ser uma criatura devastadoramente torturante, algo como o Rancor de Star Wars, crocodilos num poço de uma masmorra, ou desempregados no twitter. Mas os wombats, ao contrário, só observam.

E te fitam.

E te encaram por tanto tempo que acaba sendo ligeiramente incômodo, até que o torturado começa a ficar maluco.

E você achou que o “mortal” usado pra descrever os wombats era exagero.


Seuss também usou várias técnicas de quadrinhos que seriam mais tarde amplamente usadas, o que mostra que o maluco sabia o que tava fazendo. Eu consigo identificar pelo menos duas ou três regras ou técnicas de narrativas visuais que acabariam se tornando comuns, como dividir um cenário em dois quadros diferentes, como se a câmera estivesse fazendo uma panorâmica. Isso é usado, aliás, nos dois primeiros quadros de toda a história, quando ainda estamos sendo ambientados a esse mundo novo.

A segunda é a regra de guiar o olho do leitor, e pra isso ele usa de artifícios que envolvem até achatar um ovo no ninho, traçando uma linha invisível que faz um percurso de montanha-russa, praticamente. Em alguns momentos também é possível notar traços invisíveis de design geral da página, tornando a página subliminarmente harmoniosa e agradável de olhar.

Só pra terem uma idéia, a tira foi publicada em 1935, anos antes da lendária Action Comics #1.
Pois é.


Alas, essa história não teria um fim. Após apenas 12 semanas, somos apresentados a um antagonista real, que não teve tempo de ser explorado, mas já mostra um baita potencial. O Evil One, que parece muito o tipo de vilão em um jogo de RPG de DOS, que coleciona animais esquisitos como um cachorro com uma barbicha igual a sua e as cobras de Duna.
Ele também tem um minion que parece uma mistura de Goomba do Mario com um Goomba do Mario, que usando cogumelos (que não parecem os do Mario), rapta Hejji e o Mighty One

Porém, todo esse desenvolvimento ficaria tão em aberto quanto o final de Dark Crystal Age of Resistance. A publicação foi cancelada devido aos cortes de orçamento do jornal, afinal, era a época da Grande Depressão, onde as pessoas não tinham dinheiro e jornaleiros faziam suas rotas de entrega dançando e cantando até virarem o Batman..


Porém, no livro Golden Collection of Klassic Krazy Kool Komics for Kids (sic), o pesquisador Craig Yoe juntou uma pancada de quadrinhos quase perdidos dessa época, e comissionou um final pra essa história.

Que… é um final.


Você pode ler no Web Archive, no link acima. Provavelmente vai ter que criar uma conta pra poder pedir o livro emprestado, que é um processo automático e rápido, em menos de 30 segundos cê vai poder ter acesso ao livro na íntegra.
Digo, eu acabei colocando todas as páginas novas aqui, mas só porque eu não achei em lugar nenhum na internet. Alguém precisa fazer isso.

A história segue os mesmos padrões narrativos e até criativos, com um trocadilho do jogo go fish e uma Lu-nt (lucky ant), que é o que faz o Mighty One finalmente soprar os anéis de fumaça da boca… tecnicamente.

O traço em si é BEM diferente do que o velho Geisel fazia, e a narrativa é claramente focada em terminar a história o mais apressadamente possível, o que por um lado é compreensível, mas ao mesmo tempo se sente como uma necessidade burocrática. Não sei exatamente quais foram as instruções aqui, mas um esforço maior poderia ter sido feito.


De facto, essa tira apareceu na lista do Cartoon Brew de Cinco Obras que Merecem uma Adaptação, e eu concordo plenamente. Não só porque é uma história que merece um final definitivo, mas também por ser uma criação fantástica de Dr. Seuss, com vários maneirismos seussianos que viríamos a conhecer anos depois e que se tornaram sua marca registrada. Embora não seja uma história com as famosas rimas, ainda há muita criatividade e construção de mundo interessante que seriam facilmente traduzidos em um musical animado.

Só espero que não seja pela Illumination. A Warner pegou os direitos pra um longa animado do Cat in the Hat, então os ventos podem mudar de direção.


Até lá, teremos pelo menos uma obra fascinante, rápida, divertida, e que pelo menos houve um esforço em completar de alguma maneira.

Eu só queria saber de onde raios tiraram que o Hejji era um gênio.

A propósito, o nome dele é HEJJI, com dois jotas, e não HEIJI. Se você leu o nome dele errado até agora, volte pro começo do artigo e leia tudo de novo.

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