Mickey Mouse - O Detetive das Trevas


Talvez eu já tenha dito isso aqui, mas eu sempre gostei do Mickey. Papo sério. No meu curso de quadrinhos um dos meus colegas resumiu o desgosto popular pelo Mickey em "o Mickey não existe, Donald e Pateta são mais humanos, gente como a gente". Ou algo assim, não lembro a frase exata, mas cês entenderam.

O negócio é que a essa altura é difícil desassociar o personagem que tá literalmente na logo da Walt Disney Company, que normalmente tem posições de destaque (como Rei em Kingdom Hearts e dono do House of Mouse), como um cara comum, como eu e tu, que paga contas, se mete em encrenca, e esquece o aniversário de namoro.

Ele é a face da empresa e aparece normalmente como easter egg em vários filmes e até nos parques. Raios, os próprios funcionários da Disney se referem ao Mickey como “chefe”. Até Michael Eisner em um vídeo se refere ao Rato como "boss" (o que torna sua persona pública mais agradável do que de Bob Iger, mas assunto pra outro dia).

Nos quadrinhos, seu papel mais conhecido é o de detetive, especialmente das tiras de jornal dos anos 30-40. Nada disso colabora pra mostrar o Mickey como um cara normal, como normalmente Donald, Pateta e outros personagens são.

Mas quer saber? O Mickey detetive é legal. Dá pra fazer uma história de investigação criminal com o Mickey, mostrando-o como um herói maior-que-a-vida, mas também vulnerável, humano, com falhas. É ridiculamente difícil, mas não impossível.

Detetive das Trevas mostra isso.


E agora que eu mencionei o nome da edição brasileira, sou obrigado a mostrar essa imagem:


Sim, essa imagem é real e aparece em um dos quadrinhos do Archie.

Pronto, já podemos prosseguir.

Os europeus tem um estilo muito único de fazer quadrinhos. Pelo pouco que eu sei, eles costumam ter uma liberdade criativa absurda pra produzir suas histórias. Eu sou basicamente um leigo em quadrinhos europeus; o máximo que eu li (fora obviamente os da Disney) foram alguns volumes de Asterix, um de Tex, e Pyrenée. E lembrando que Pyrenée é basicamente a história de Mogli na França, onde a protagonista passa o tempo todo desprovida de roupa, tal qual o menino lobo na história original. Então sim, eles tem uma liberdade e cultura narrativa absurdamente diferente dos outros continentes.

Em termos de quadrinhos Disneyanos, os autores europeus normalmente fazem histórias de cotidiano, geralmente envolvendo algum quiproquó ou alguma trama típica de comédia do gênero, com os exageros que merecem. Sei lá, Tio Patinhas e Patacôncio numa guerra de propagandas, ou Mickey tentando ser um bom namorado e montar os móveis DIY que a Minnie comprou.

As liberdades criativas também geram histórias únicas. Nada como Pyrenée, CLARO, mas ainda assim tem uma história onde Mickey começa a namorar uma feiticeira, baseado no filme I Married a Witch de 1942. Tem também Ratópolis, uma homenagem ao filme Metropolis, recontando a história do longa com personagens do universo patopolense. Eu mencionei algumas histórias italianas bizarras por aqui antes.

Por outro lado, os autores também tem idéias absurdas. Uma paródia de Star Trek? Claro! Mickey libertando um duende que causa altas confusões? Sim! E é essa liberdade que torna a leitura de um gibi com coletâneas de republicações algo tão interessante. É uma caixa de doces sortidos, ou um pacote de De Montão, ou uma manhã de sábado com desenhos que os produtores não sabem exatamente o que passar e sem querer passam um episódio de uma série que tá na geladeira há pelo menos 5 anos.

De alguma forma, essa é
a parada mais normal da história.
E Deus abençoe os editores locais de quadrinhos Disney, porque a empresa REALMENTE não tá se importando tanto com uma mídia tão passageira e descartável do ponto de vista monetário.

Coisas assim dificilmente sairiam com a mesma facilidade nos Estados Unidos ou no Brasil, que normalmente não tem um estilo tão solto. Dá pra notar pelos traços mesmo, que são mais "no modelo" e menos espontâneos, sem expressões faciais ou movimentos exagerados. E as histórias geralmente são... eehhh. Não são ruins, mas... nota-se uma certa limitação de construção de piada.
Tem exceções, claro, como Carl Barks, Don Rosa, Renato Canini, e as tiras de jornal no início da carreira do Mickey.

Os europeus também gostam de fazer supersagas, o que resulta em histórias mais interessantes e até com escalas maiores e mais épicas, tais como DonaldDuplo, Dragon Lords, e Os Mágicos de Mickey. E hoje temos uma dessas supersagas praticamente autorais, Mickey Mouse Mystery Magazine.


A história começa com Mickey descobrindo-se sócio de uma agência de detetives em Anderville que teria aberto com seu amigo de faculdade, Sonny. Só que Sonny tá envolvido em altas confusões com os políticos locais após entrar num buraco de coelho durante uma investigação, e precisou se ausentar da cidade sob um programa de proteção à testemunha. Ele então deixa a agência aos cuidados de Mickey, porque ele é basicamente o único amigo próximo que o maluco tinha. Ou ao menos próximo o suficiente pra abrir uma agência no nome dos dois sem o outro saber.

Tipo K-On! quando a Ristu arrasta a Mio pro clube de música porcausa de uma promessa antiga. E sim, vemos esses flashbacks entre Mickey e Sonny, o que é interessante, poucas vezes temos a oportunidade de vermos Mickey na faculdade assim. Tinha uma série inteira com esse intuito, que aqui ficou conhecida como High School Minnie, porque é claro que sim.

E enquanto rola os trâmites legais pra proteger Sonny até o dia do julgamento dos chefões do submundo da cidade, o nosso camundongo favorito e adorável vai ter que se virar pra enfrentar uma cidade suja, impura, habitada por cidadãos repelentes e egoístas.
Basicamente o bairro do Benfica/Centro de Fortaleza.

E quanto mais Mickey começa a investigar os casos que recebe, mais fundo ele se enrola nas tramas e subtramas envolvendo corrupção de poderosos da cidade, e representa uma legítima ameaça pro sistema que os favorece, já que é um detetive investigativo sério que não se deixa ser levado ou abalado pelo jogo de poder.


Quando eu era moleque, eu li uma história curta do Mickey chamada Bad Boys. Era uma história visualmente diferente das outras que eram normalmente publicadas (ao menos as que eu lembro de ter lido na época), por ser mais detalhado, mas ao mesmo tempo cartunesco. As tomadas de câmera e tom da história tinham um claro clima de noir (HAH) e a história parecia lidar com gângsters reais.

MMMM olhou e disse "ok bora fazer isso, só que a sério".

Also, essa é a melhor sigla pra qualquer coisa que exista.


Cada capítulo da mini-série contém uma história fechada, mas ao mesmo tempo dentro de uma linha cronológica que conta uma história maior, tal qual a maioria dos desenhos mainstream desde 2010. Meu único problema com a forma que os capítulos são apresentados é que, como as vinhetas de "Fim" e o título de cada capítulo toma muitas liberdades artísticas, dá pra se confundir um pouco quanto à narrativa das histórias. Em alguns momentos eu acabei emendando duas histórias porcausa disso, mas esse problema não existe no formato original, então ok.
Na real eu é que sou tonto demais pra perceber quando a história acabava mesmo. Enfim.

São equipes criativas diferentes que vão alternando entre si, então é legal ver como o traço muda sutilmente de uma história pra outra. E eu digo MUITO sutilmente, eu tive que fazer um esforço pra perceber. O que é bom, faz com que as histórias tenham uma sensação de consistência, mas ainda tenha uma pequena variedade de cada artista.

O que dá pra REALMENTE confundir é o fluxo de leitura de algumas páginas. Por exemplo:


Sim, a qualidade tá foto tá zoada, acontece.
Páginas assim não são incomuns e o fluxo é meio incerto. Quando tu se acostuma com a página é ok, mas se tu é pego de surpresa, é estranho demais. Especialmente porque elas estão juntas de páginas com fluxo normal.

Eu sempre acabo lendo assim:


Esse é o padrão de leitura normal, mas errado nessas páginas (nas outras é comum ou mais fácil de identificar o fluxo).
A forma correta de ler é assim:


Pra defesa da HQ, eles dão as pistas de flow nas imagens. Por exemplo, o olhar do inspetor bigodudo ali aponta diretamente pro próximo balão de fala na ordem, e os objetos no campo de visão dele (o nariz do Mickey, a pasta na mão direita) fazem um traçado imaginário sutil que aponta pra ordem de leitura correta. Mas eu li do começo ao fim duas vezes e nas duas vezes fui pego de surpresa com coisa assim e me confundi, então é algo incomum e que pode atrapalhar. A técnica existe e é bem executada, mas talvez tenha faltado um refino maior.
Mas isso é mais eu sendo cata-piolho mesmo. Se bobear isso é característica de narrativa italiana, como acontece em toda cultura.


As tramas são relativamente fáceis de seguir, mas ao contrário do que eu pessoalmente sempre espero de uma trama do tipo, não tem muita interatividade. Como eu já mencionei em outros artigos, geralmente histórias de detetive te instigam a tentar descobrir o mistério junto dos personagens. Aqui... é mais complicado. O único filme noir que eu vi foi The Big Sleep, e eu nem lembro bem como foi. No máximo, ok, Roger Rabbit, mas não é um noir no estilo clássico.

As tramas de Mystery Magazine não são do tipo que dá pra tu decifrar o crime ou enigma, tu só vai acompanhando Mickey e quem mais tiver junto na história, e o rato que faz todo o trabalho duro. São crimes que giram mais em torno de lavagem de dinheiro e jogo de poder, então me parece ser uma decisão mais sábia. Não dá pra esperar tanto assim do leitor, é o tipo de coisa que nem todo mundo consegue deduzir.

Por sorte, o que lhe falta em interatividade sobra em personalidade.


Cada personagem de Anderville é marcante e memorável, nem que seja visualmente. Tem o inspetor-chefe lá que vive com uma carranca e bigode dignos do Sargento Fahur, mas que no fundo tem um coração mole e um certo apreço por Mickey; Patty, a policial durona e sarcástica que provavelmente deveria ter aparecido mais; Vera, a namorada semi-gótica de Sonny; Little Caesar, que tem uma lanchonete que serve como "base" pro Mickey (tipo em Super Sentai/Power Rangers/Kamen Rider), e cujos frequentadores vivem zoando a comida do lugar de forma semi-amgável; a guria rica  e bonita com um amigo viciado em jogos de azar; o moleque caipira tonto e grandão; e assim por diante.

São personagens muito diferentes dos encontrados em Patópolis, mais cínicos, mais... realistas, eu diria. Embora vivam numa cidade caótica dominada pelo crime e correria, alguns ainda buscam alguma beleza em viver por lá, ainda que seja debaixo de uma casca grossa de irritabilidade e desconfiança, mas que aos poucos o rato vai descobrindo como lidar e aprendendo a apreciar a cidade.

E assim como o protagonista, o período em que ele é obrigado a ficar por lá acaba sendo menos doloroso devido a essas personalidades carismáticas. Pena que não tenha dado pra ver o resto.


Sim, o volume lançado pela Abril aqui só tem metade da mini-série, mas em nenhum lugar na capa indica ser o "volume 1". O que é meio enganoso, mas eu acabei comprando no impulso porque eu queria MUITO ler essas histórias. É o tipo de coisa que eu gosto de ver quando é publicado por aqui, e se alguém da Culturama tiver lendo isso, POR FAVOR LANCE O VOLUME 2.
E me manda uma cópia pra resenhar aqui, se puder, serei eternamente grato.
Talvez eles não tenham colocado "volume 1" porque a Abril sabia que tava perto de largar os títulos da Disney no Brasil e sabia que não ia dar pra lançarem o segundo volume. Eu não sei de nada, eu só conjecturo.

A saga completa foi publicada em Portugal, no entanto. Se tu tiver acesso a essas histórias, me diz se vale a pena continuar, eu não sei se vou conseguir acesso tão cedo. Caso tu queira comprar o volume da Abril, tem disponível na Amazon a um preço bem mais acessível do que o quanto eu gastei.
Um dos motivos pra eu escrever esse artigo foi pra não levar uma mãozada da minha amiga que tava comigo na hora. Era muita grana por um quadrinho, mesmo um encadernado desse.

Se tu gosta de história de detetives hard boiled, talvez não tenha a mesma dificuldade que eu tive em ler MMMM e vai achar alguma coisa que goste aqui, com certeza. Ou se tu tá cansado de ler histórias do Mickey como herói perfeitinho como nos gibis mensais, vale a pena ver esse conceito mais sombrio por cima do personagem.

É uma história intrigante, divertida, com traços e cores FANTÁSTICOS (como é de costume de desenhistas italianos; eu amo como o desenho é bem carregado de detalhes, mas as cores te fazem focar no que é importante pra cena em questão) e que mostra um Mickey que não é muito visto por nós: sendo um humano frágil confrontado por obstáculos maiores que ele mesmo, mas ainda aquele detetive que conhecemos e amamos.


Tem outras sagas do tipo com o Mickey que eu vou tentar dar uma olhada no futuro. De preferência onde eu possa ler completa, pra não ficar atacando meu juízo.
Eu fico muito impaciente se eu não terminar algo assim.
De novo, se alguém da Culturama tiver lendo isso, POR FAVOR OUÇAM MEU CLAMOR E ME MANDEM UMA CÓPIA DE RESENHA, SEREI ETERNAMENTE GRATO.



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E se tu se interessou legitimamente pela história, considera comprar pela Amazon, que também é uma forma de ajudar o blog.



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1 comments

  1. +Kapan, sempre gosto muito de seus artigos!

    Gostaria muito de saber a sua opinião se é possível um crossover entre a Mulher-Maravilha e os Cavaleiros do Zodíaco nos filmes live-action (já disse e digo de novo: um filme desses tem o potencial para uma bilheteria internacional semelhante a de Vingadores: Guerra Infinita, caso seja feito de maneira muito bem feita)!

    Ouso dizer que há um potencial para uma trilogia de crossovers da Mulher-Maravilha e os Cavaleiros do Zodíaco que poderia fazer frente a grandes franquias de super-heróis, como Vingadores e até mesmo, filmes bem feitos do Quarteto Fantástico!

    #PERGUNTA: Será que a Sony consideraria rever o contrato que possui com a Marvel sobre os direitos do Homem-Aranha com um possível sucesso de Venom 2 (aqui, entende-se o filme fazendo mais de 1 bilhão, coisa que nenhum filme do Homem-Aranha até hoje conseguiu (óbvia exceção a trilogia do Homem-Aranha do Sam Raimi com correção de inflação))?

    Se a Sony fosse esperta, ela compraria os direitos de adaptação da HQ Marvels, que não há como ser encaixada no Universo Cinematográfico Marvel, até porque é fora da cronologia, e tentaria produzir um filme ótimo a partir disso, justificando a compra dos direitos de histórias da Marvel fora da cronologia como Marvel 1602, Ruins, e alguns What If?

    Isso para não falar na possibilidade de produzir um filme Venomverso contra Aranhaverso (todas as versões do Venom contra todas as versões do Homem-aranha), com isso fechando uma trilogia do simbionte!

    Até lá, já terá existido dois filmes animados do Aranhaverso, com isso, ficando mais fácil para apresentar os personagens e desenvolve-los nesse filme!

    # SEGUNDA PERGUNTA: Por que a Mulher-Maravilha em algumas missões de resgate e/ou de reconhecimento não usa um traje tático e/ou furtivo, para evitar de chamar a atenção, com isso usando o elemento surpresa a seu favor (só uma dúvida que tenho)?

    No mais, continue com o ótimo trabalho e aguardo resposta!

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