[Mês do Dr. Seuss] Ovos Verdes com Presunto (Netflix, temporada 1)


Cês lembram que ano passado eu comecei o Mês do Dr. Seuss com o jogo de Green Eggs and Ham, né? E lembram que eu terminei o artigo com o anúncio lá da série da Netflix?

Pois bem, chegou a hora.

O anúncio que deixou a cabeça do mundo coçando, o conceito que parecia ser absurdo demais pra funcionar. Adaptações Seussianas não tem um histórico muito bacana, como vocês sabem, caindo curiosamente nos exatos mesmos clichês: piadas adultas demais, comédia sem graça, ou visuais que não sabem se querem ser cartunescos demais ou realistas demais, ou errando totalmente a moral do livro original.

Mas vejam bem, há um padrão: todas as outras adaptações são de livros com histórias completas, com um arco narrativo de 3 partes. Green Eggs and Ham é um amontoado de rimas soltas com uma história bobinha. Como traduzir isso pra uma temporada de 13 episódios?

Bom, vejamos.



Antes de mais nada, vamo pesquisar o nome do protagonista. No artigo do jogo lá eu disse que o cara alto de chapéu se chamava Joey, e de fato, era assim seu nome na página da Seuss Wiki (como aponta os comentários e até o momento da publicação desse artigo, em outra entrada na Wikia). Segundo os comentários, alguém simplesmente botou o nome como Joey, e outros o chamavam de outros nomes como Gar You Are, Guy In The Hat, e Ralph.

Mas aqui nessa série o nome é Guy Am-I, que na dublagem ficou como João Sei-Não. Sam I-Am se tornou Romeu Sou-Eu, o que é muito criativo, gostei dessas adaptações. Maioria das piadas e trocadilhos eu acho que se perderam, eu fiquei trocando os idiomas vez ou outra enquanto assistia, e algumas rimas foram adaptadas brilhantemente, enquanto outras foram jogadas pela janela mesmo. Mas eu vi tudo em inglês, feito um cidadão de bem.


A história segue Guy, um inventor fracassado, e Sam, um agente de proteção à vida animal. Sam rouba um animal conhecido como Chickeraffe (ou Galinhafa, sei lá como ficou na dublagem BR), e precisa levá-la pra cidade grande, onde vai pegar um balão e levar pra floresta. Guy tem que ir pra mesma cidade pra ser um Fiscal de Tinta, já que ele desistiu de ser um inventor.

Ao mesmo tempo, temos Michelle e sua filha EB, que também vão pra mesma cidade onde vai ter alguma festividade onde Michelle vai apresentar os feijões que ela contou. Esse é o trabalho dela. Contadora. De feijões.

E atrás da Galinhafa estão os Badguys (Malvados), uma dupla típica de buddy cop com o velho ranzinza prestes a se aposentar fazendo o último trabalho e a novata hiperativa que não sabe fazer seu trabalho direito. Eles também tão atrás da Galinhafa, a mando do Sr. Snerz, dono da companhia que Guy tentava vender suas invenções e onde Michelle trabalha.
Also, esses dois são uma das melhores coisas do desenho. Eles tem uma dinâmica parecida com a de Guy e Sam, mas mais extremos.

E porque a Ellen DeGeneres produziu esse desenho pra Netflix, o vilão empresário podre de rico, narcisista e birrento parece o Donald Trump.


Cê poderia até dizer que o topete é em homenagem ao dublador dele, mas qualé. É CLARO que a Ellen e a Netflix iam fazer algo assim de propósito. Mas pro crédito da série, ele não soa como uma caricatura "the left can't meme", mas consegue existir dentro do universo criado pro desenho.

Ainda soa imbecil demais pros adultos que entendem a intenção, mas ainda assim.

Ok, com isso fora do caminho, lembremos que Green Eggs and Ham é um livro incrivelmente curto, talvez um dos mais curtos do Dr.. Com só 50 palavras (resultado de uma aposta com o editor), o livro conta sobre Sam-I-Am insistindo que seu amigo ranzinza coma ovos verdes com presunto tal qual um brony insiste que cê assista Friendship is Magic.
O que, sabe, cê totalmente devia.

Sam mostra várias situações onde ele poderia comer o prato estranho e outro cara rejeita, até o momento que ele aceita só pra se livrar e Sam e acaba gostando. É um livro legal pra crianças em fase de alfabetização e adultos que querem desenvolver fluência em inglês mas não sabem por onde começar, fora que tem a lição de testar coisas novas, como as verduras que as crianças insistem em rejeitar, ou desenhos sobre pôneis coloridos que adultos insistem em rejeitar.


A série da Netflix obviamente expande MUITO o livro, talvez a maior expansão desde The Cat in the Hat Knows a Lot About That. Só que ao contrário de ter episódios fechados, temos uma temporada de história contínua, e personagens com arcos dramáticos complexos.

Sam é um personagem que nas mãos de um roteirista incompetente, seria irritante. De fato, ele é basicamente o Bob Esponja nas primeiras temporadas, absurdamente otimista, brincalhão, mas um cara de bom coração e que tem seus momentos mais tristes. Ele também tem muita semelhança com Wander de Galáxia Wander, não só na aparência e personalidade, mas também o dublador BR é o Yuri Chesman.


Ao contrário do que se imagina, ele acaba sendo um equilíbrio perfeito pro Guy, que é um ranzinza depressivo que desistiu de seus sonhos porque nada dava certo e onde antes havia um brilho nos olhos agora só tem um preto tão profundo que suga um pouco da luz ambiente toda vez que ele abre os olhos.

Completando o fato de que ele também é alto, peludo e usa chapéu, poderia ser uma descrição minha.

Tem só um episódio que Sam é obnoxiamente irritante a ponto de soa fora do personagem, mas é só um episódio mesmo, no geral ele mantém o otimismo na medida certa.


Michelle é uma mãe cartunescamente superprotetora e segue seu arco narrativo com EB onde EB tenta convencer a mãe a dar mais liberdade pra ela. Aos poucos vamos deduzindo melhor os motivos disso, e tem também o lance que o Guy é apaixonado pela Michelle.

Porque é claro que temos esse plot aqui. Pra ser sincero eles tem aquele romancezinho imbecil de vai-e-vem, mas nesse caso eu tou com a Michelle, toda vez que Guy e Sam cruzam o caminho delas alguma catástrofe acontece.

Tipo aquele lance que a Haruhi menciona no episódio do barco, onde quer que o detetive vá o mistério sempre o persegue. Eu tenho quase certeza que tem um nome específico mas eu não consegui achar. Michelle teme pela segurança dela e de sua filha, então é justificável que ela se afaste de Guy, especialmente porque eles tavam começando a se dar bem e ele pula fora sem dar mais explicações, sendo que ESSE SERIA O MOMENTO IDEAL PRA DAR EXPLICAÇÕES E ELE NÃO O FAZ.


Fora esse subplot, o resto da série é ESPETACULAR. Arrisco dizer que é um dos melhores derivados das obras do Dr. Seuss até o momento. A animação é espetacular, foi feito tudo no computador, mas o processo de animação foi igual o tradicional, desenhando frame por frame. Dá um trabalho desgraçado, mas o resultado é sensacional.

Eu ia linkar vídeos do processo de animação, mas todos os que eu achei tão fora do ar. Então sei lá tem esse vídeo do Saberspark que faz um trabalho melhor que o meu e tem alguns trechos dessas animações, então vê aí depois que terminar o artigo.
Mas só depois de terminar o artigo, tou de olho em você.
VOCÊ MESMO!

O desenho também faz algo que a Disney fazia no passado e atingiu o ápice com Tarzan: a mistura de 2D com 3D com perfeição e discrição. Aqui o 3D é usado de forma incrivelmente sutil, com alguns props como as invenções de Guy, carros, ou portas. A forma que renderizaram se mistura bem no design 2D e em alguns momentos é quase imperceptível, e mesmo quando tu percebe que é 3D, teu olho não rejeita, por vezes graças ao cel shading.

Outro momento que creio que mereça destaque é o delírio de Guy no deserto. Pra um desenho com um mundo naturalmente surreal, fazer uma cena de delírio era um desafio, e os caras foram além do necessário e o resultado compensa.

Aliás, verdade, falemos do world building.


Dr. Seuss tinha um estilo muito particular de desenho. Era cartunesco ao extremo e ele costumava pegar coisas do cotidiano e pensar em maneiras totalmente exageradas de fazer coisas simples. Ou simplesmente pra chamar atenção a algo da história, como braços mecânicos com luvas gigantes apontando em Green Eggs with Ham.

O mundo aqui segue o mesmo padrão, com meios de transporte, prédios, e outros utensílios cotidianos seguindo a mesma lógica dos livros, constantemente usando de coisas mecânicas com luvas, muitas curvas, e cores brilhantes. O mesmo vale pro design de personagens, que segue aquele padrão dos Who, mas também consegue nos dar personagens completos, verossímeis, mesmo os figurantes.

É legal porque o desenho tem tipo 3 núcleos que se intercalam, então nunca soa muito parado. A narrativa sempre parece que tá andando e fluindo pra algum lugar.


Outro ponto que eu gostei muito é o drama bem construído. Passamos muito tempo com esses personagens, e cada um tem o momento certo pra contar sobre seu passado. Sam a gente já tem uma noção de que ele é sozinho na vida e por isso ele acaba sendo meio grudento e carente quando encontra Guy, mas só vamos saber toda sua história e sua relação com Ovos Verdes com Presunto lá pro final, quando descobrimos de vez sobre os dramas de Guy.

E... eu me identifico com ele. Maluco já teve decepção demais na vida, nada que ele faz dá certo, o objetivo dele agora é arranjar um emprego maçante e parado, mas seguro, algo que assusta até sua própria família, que sempre o viu como um cara criativo. Sua família é composta de gente de grande sucesso em suas áreas também (de forma literal; são basicamente trocadilhos que mesmo num universo que tem um trabalho definido como "observar a tinta secar" conseguem te pegar de surpresa), Guy se sente incapaz, menor, e mal-sucedido.


Guy, assim como muitos de nós, sofre da Síndrome do Impostor. Ele não consegue ver a capacidade que tem nem admitir suas próprias falhas e fracassos e tentar aprender com eles. O momento que ele desabafa com Sam sobre seus medos e ansiedades foi o momento que me fez perceber que eu nunca achei que fosse chorar com um desenho baseado num livro do Dr. Seuss.

Sam também tem uma história parecida, mas ele enfrenta suas dificuldades com otimismo, porque é tudo que lhe restou. É uma diferença de personalidades boa e que se completa e traz alguma reflexão valorosa pro mundo real.


Eu sempre me achei meio purista em relação a Dr. Seuss. Sempre preferi os curtas que contavam as histórias à risca como os do Chuck Jones, Ralph Bakshi, ou De-Patie-Freleng. Sabe, O Lorax, Como O Grinch Roubou o Natal, The Cat in the Hat, e Butter Battle Book, além do próprio Green Eggs with Ham.

Talvez os longas animados tenham me deixado receoso em adaptações com histórias próprias baseadas nos livros. Digo, já existiu uma série estilo Sesame Street com os personagens de Seuss, teve aquele desenho educativo do Cat in the Hat, e agora isso. O desenho pega a mesma temática de tentar coisas diferentes, ilustrado tanto pelo relacionamento de Guy e Sam (que todo episódio insiste que ele coma ovos verdes com presunto, inclusive referenciando rimas do livro, tanto no roteiro como no título dos episódios), mas também com Michelle e EB.


O humor adulto não é grosseiro como nas outras adaptações. Pelo contrário, é algo que adultos entendem, mas talvez passem voando pela cabeça das crianças, mas ao mesmo tempo não é obsceno.

Por exemplo, tem um rato lá que é basicamente o Jean Valjean; o raposo lá é um homem feministo; Sam oferece fazer ovos verdes pra Michelle e EB, mas Michelle responde com "eu sou vegana" e Sam com tom de dó "ai nossa eu sinto muito, eu não sabia, quando descobriu?" como se fosse uma doença.

E tem alguns momentos que a comédia fica muito schadenfreudiana, o que é impressionante tratando-se de um desenho baseado em livro do Dr. Seuss. Aliás, vários momentos o narrador admite que foi pego de surpresa porque é um desenho de Dr. Seuss, e ele não esperava coisas como, sei lá, um ninja.

É sensacional, é hilário, é sutil, adultos vão entender e achar graça mas ao mesmo tempo não é humor de banheiro. Se tratando de adaptações de grande orçamento seussianas, isso é algo surreal. E sim, foi provavelmente a animação mais cara da Netflix, custando em torno de 6 milhões por episódio (eu só não posso garantir que foi a mais cara porque não achei o orçamento de Dark Crystal: Age of Resistance). E tu vê o dinheiro na tela e vale a pena.


Eu tava com o pé atrás quando anunciaram a série ano passado, mas o desenho foi uma grata surpresa. Uma segunda temporada já tá em produção, e eu mal posso esperar pra assistir.

E sim, eu vou tentar fazer a receita dos Ovos Verdes com Presunto.


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Sério, já viu o preço do salmão? Pois é.


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