The Cuphead Show!


Cuphead foi uma das mais gratas surpresas e mais ousados projetos dos jogos eletrônicos dos últimos tempos. É como se fosse uma versão definitiva de Mickey Mania ou Rabbit Rampage de SNES,, inspirado pelos curtas de seus respectivos personagens, só que finalmente se apossando de seu potencial completo.

O que é uma pena que, depois de Cuphead, provavelmente não veremos um Mickey Mania ou Rabbit Rampage nesse estilo tão cedo, mas eu divago.

Cuphead, no entanto, se inspirava mais nos curtas da Fleischer do que propriamente nos da Disney ou Looney Tunes, embora os protagonistas sejam claramente o equivalente a misturar Mickey e Megaman numa massinha de modelar.

Essa analogia não fez sentido? Muitos curtas dos anos 30 também não faziam, pegue qualquer curta da Betty Boop e entenderá. Infelizmente, Cuphead the Show faz sentido demais, mas ainda é um bom tributo à animação da Era de Ouro.



Se você já jogou Cuphead (ou assistiu a gameplays no YouTube porque você é um jornalista de GAEMS e naturalmente não sabe jogar jogos), conhece a história que bota Cuphead, um imbecil e inocente crônico, tendo que pagar uma dívida ao Diabo, indo atrás dos outros devedores do capeta, e ao final, derrotando o sete-peles.

Sim, essencialmente é um Agiota Simulator.

A história da série animada toma várias liberdades em relação ao jogo, mas ainda se mantém no mesmo nível que os curtas que homenageia. Cuphead e Mugman (que na dublagem ficaram como Xicrinho e Caneco, matando o trocadilho com Megaman e se desviando da opção óbvia de Zeca Neca) fogem de suas responsabilidades e vão prum parque de diversões, porque esse é o mais próximo de um fliperama que existia nos anos 30.

Cuphead tem uma maré de boa sorte, até que o dono do carnival, o próprio cramunhão, interfere no jogo e faz com que Cuphead perca sua alma, que é puxada de volta ao corpo por seu irmão, ZECA NECA.


Com isso, Cuphead agora tem que fugir do Diabo, que tenta a todo custo pegar sua alma. E é por isso que a maioria dos plots dos episódios giram em torno de roubar sorvete de dois sapos ex-boxeadores, colar a asa de Mugman, e tomar conta de um bebê capaz de destruir uma casa usando apenas shenanigans.

É tipo aquele curta do Zezé d’Os Incríveis, só que sem Mozart.

Os produtores da série tinham um imenso desafio em suas mãos. Digo, desafio maior do que trabalhar pra Netflix sem se tornar um NPC e ser cancelado na internet porque… sei lá, ousou botar açúcar no café ou olhar nos olhos de um colega por mais de 10 segundos. O negócio é que eles tentaram emular o estilo de animação dos anos 30 e 40, época em que o conceito de animação era totalmente diferente do que é hoje. Aliás, o próprio cinema era diferente.


Ainda há o costume de usar typecasting, e nessa época era ainda mais comum. Abbot e Costelo não faziam dramas, Lon Cheney nunca seria um galã, e Judy Garland sempre recebia os papéis de mocinha inocente e adorável. Da mesma forma, Brutus e Pete eram sempre os vilões, Betty Boop era sempre a mocinha, e Bimbo era o everyman meio tonto mas de bom coração.

Era um esquema muito engessado, mas que funcionava pra animações que dificilmente passavam de 10 minutos, com a única função de ser engraçada e com imagens que sincronizassem visualmente com a música. Os plots eram absurdamente simplórios, e não faziam parte de uma série cronológica como estamos habituados.

Já a Netflix trabalha com outra filosofia, recompensando a quantidade de tempo assistido das produções e tentando ao máximo engajar o usuário a continuar assistindo alguma coisa. É por isso que eles tem o péssimo costume de soltar temporadas inteiras de uma vez e a própria interface do streaming fica te empurrando constantemente algo pra ver, algo que foi copiado pelas outras plataformas.

Um dos grandes trunfos da série é que cada episódio funciona independentemente dos outros... exceto quando não. Por exemplo, tem esses episódios que eu mencionei cujos plots são totalmente alheios ao plot principal estabelecido no primeiro episódio, e há episódios onde, por exemplo, Cuphead participa de um game show cujo host é o King Dice, que é mais um empregado do Diabo pra capturar almas.


É como se a série inteira não soubesse exatamente o que quer ser, se um tributo aos curtas da Era de Ouro, ou só mais uma série da Netflix. Pode parecer pouco, mas depois que cê passa da metade da série, você fica com o sentimento de “ok, e agora?”. É até estranho de descrever, porque eu acho que eu nunca vi algo assim antes.

Por exemplo, séries como My Little Pony Friendship is Magic fazem algo parecido, mas soa muito mais natural por terem mais episódios e mais tempo por episódio. E eles não tentavam emular o estilo gráfico/narrativo/filosófico antiquado dos anos 30/40. Mesma coisa vale pra outros desenhos da mesma época, como Hora de Aventura e Tranformers Prime.

De fato, provavelmente a melhor saída pra essa série seria algo mais próximo de Apenas um Show, que nesse sentido conseguia simular melhor o absoluto caos que eram as animações nesse período. Só que Apenas um Show ainda tinha que ter a animação constantemente firmada em alguma realidade, ao contrário de… digamos, Fleischer.


De cabeça, tem um curta da Betty Boop que o pai dela começa a gritar tanto com ela, que a cabeça dele vira um gramofone. Em Popeye meets Sinbad, Brutus (como Sinbad) aperta o marinheiro com elefantíase com tanta força que a cabeça do Popeye vira um nabo.

Esse é o tipo de animação que eu gostaria de ver mais em Cuphead. Embora haja momentos em que a Era de Ouro é devidamente homenageada, são nada mais que momentos pontuais. O uso de maquetes é notório, por exemplo (cortesia da Screen-Novelties, que é especializada em stop motion; no site deles tem uma penca de exemplos de trabalhos deles, que vão desde um clipe de Monster High até a sequência de sonho em Flintstones on the Rocks).

Um dos efeitos mais legais de animação nesse período (que era feito quase que exclusivamente pela Fleischer) era usar maquetes pra dar uma ilusão ainda maior de profundidade nos curtas. Dá pra ver isso com clareza em Popeye meets Sinbad, mas há diversos outros exemplos. No jogo mesmo eram usadas maquetes, e aqui há… alguns momentos.

São ótimas animações e muito bem modelados, mas não são nada mais que isso: momentos.


Pequenas coisas na animação em geral (além da narrativa meio quebrada que o formato obriga a ter) causam essa suspensão da descrença. Jogando Cuphead, eu consigo piamente acreditar que é um jogo feito nos anos 30, porque o estilo visual sangra referências visuais aos curtas dessa época. E não é referência tipo "NOSSA MAS É O MESMO TELEFONE QUE APARECE EM MICKEY TROUGH THE LOOKING GLASS", é coisa mais sutil, como técnicas artísticas de modelagem, animação, pintura em aquarela, tudo sendo usado pra criar algo novo.

Há coisas específicas, como o dragão que ao mesmo tempo é baseado num chefe tecnicamente impressionante de Megaman, como também é baseado numa criatura em Popeye meets Sinbad. Ou o uso da regra "sometimes white gloves, sometimes yellow gloves".

Mas os detalhes que tanto ajudam na imersão do jogo tão em constante falta na série animada. Embora tecnicamente toda a animação e design de produção seja fantástico em simular o estilo em questão (incluindo as ocasionais sombras das células de animação), diminuíram bastante o granulado visual e falhas de filme envelhecido.

Eu creio que o modo que a animação foi feita na série também crie essa estranheza visual, já que o jogo foi realmente animado usando folhas físicas como nos bons e velhos tempos, enquanto a Netflix usou a evolução do Adobe Flash (que descanse em pança).

Outra coisa que me quebra a suspensão da descrença é o storyboarding do desenho, que segue muito mais ângulos de câmera modernos, ao invés de se fixarem nas limitações da época que ele tenta simular.


Parece muito cata-piolhagem, e de forma nenhuma eu quero desmerecer o trabalho dos animadores, que devem ter dado ⅗ dos fluidos corporais pra fazer esse projeto. Raios, até dos dubladores, que usam um sotaque nova iorquino mais carregado da época, que dá pra ser ouvido no Pernalonga e na fala "The woid is yer ester" em Newsies.

Mas durante uma assistida normal, essas coisas começaram a incomodar sem que eu soubesse exatamente o que eram. Só ficou claro depois de analisar footage do jogo e de alguns curtas da Fleischer.


Felizmente, Cuphead é uma boa série de meio do caminho. Não é terrivelmente desagradável nem absurdamente fantástica, então tem chances de ser renovada. Caso fosse intragável, seria renovada com certeza; se fosse absurda de boa, seria cancelada.

Sim, ainda tou irritado com o tratamento que deram a Age of Resistance.

Mas ei, pelo menos com a série animada os GAME JOURNOS não vão ficar presos na abertura por incompetência deles.

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