Elcano e Magalhães: A Primeira Volta ao Mundo


Um negócio que nunca me desceu bem é o tom de “OS CONTOS DE FADA ORIGINAIS ERAM MACABROS”. Sempre que me aparece alguém falando sobre como a Aurora foi estuprada, ou como a Pequena Sereia morre no final, ou como a Branca de Neve foi estuprada, ou como as meio-irmãs da Cinderela tiveram os olhos arrancados por corvos, eu sinto que a gente já podia ter passado desse ponto há mais tempo. O fato de sempre virem me contar como se fossem um membro do Clube do Terror não ajuda.

Mas é nessas horas que eu me sinto na obrigação de contar sobre as várias versões dos mesmos contos, e que é absolutamente normal, e cada versão tem um aspecto do zeitgeist em que é contada. Raios, a Cinderela Irlandesa vai à missa e foi empurrada pela sua irmã ciumenta pra ser engolida por uma baleia, e isso nem é a parte mais estranha da história.

Além disso, o aspecto mais sombrio tinha funções práticas pra cada época. Duvido que qualquer criança tentasse conversar com lobos na floresta depois de ouvir sobre Chapeuzinho Vermelho. Claro, não conheço muitas crianças que tentariam conversar com um lobo, mas não existia Dr. Dolittle na época pra influenciar os poliglotas animais.


Quando se trata de História, há um desafio ainda maior de adaptar eventos sangrentos e complexos pra crianças, e muitos filmes tem esse desafio. E muito deles falham miseravelmente, como o filme onde Cristóvão Colombo descobre a América graças a uma traça falante.

O que é engraçado, porque Newsies, Hamilton, Evita, e provavelmente mais tantos outros musicais baseados em fatos reais também tem trocentos erros históricos, mas ninguém se importa. Provavelmente é porque ninguém consegue entender o ritmo rápido de Hamilton e só ouvem a melodia pululante e rápida. Bando de analfabetos!

E assim como Newsies e Hamilton, eu achei esse filme no Disney+, mas já conhecia graças a uma resenha do Saberspark, mas nada poderia me preparar pro absurdo monótono que é esse filme.

Porque infernos esse filme tá no Disney+? Vai saber.

Então, vamos fazer como Magalhães e zarpar até morrer… de tédio. Isto é Elcano e Magellan.



Como é um filme feito na América Latina, antes de termos o título do filme, vemos o sem número de patrocinadores que fazem com que o filme se pareça mais com um uniforme de Fórmula 1, mas como isto não é um vídeo, não dá pra mostrar apropriadamente.


Pera, esse filme foi feito na Espanha.


Eh. América Latina com lasers.


A história conta sobre Elcano, que aqui é basicamente o Flynn Rider carioca, que deve uma grana bruta pra tanta gente que já deve existir uma guilda de cobradores só pra ele. Guiado por uma vidente local, ele se inscreve na expedição de Fernão de Magalhães, que, mesmo sendo português, serve à coroa espanhola, então não pode usar a rota portuguesa pra comprar temperos. Nada disso é bem explicado e todos os detalhes históricos passam desapercebidos, aliás.

Mas como a patroa o ralhou por ter esquecido de estocar colorau, Fernão bola um caminho alternativo, mais longo, dando a volta ao mundo, que passa por rochedos, tempestades, frio congelante, e filipinos que por algum motivo se vestem como astecas.

Traficantes e personal shoppers sofriam na Grande Era da Navegação. Ou ele só queria uma folga da esposa, sei lá.


Elcano assume a tripulação após Magalhães sofrer um motim e morrer durante a batalha contra Lapu-Lapu, que eu só sei que é Lapu-Lapu porque na capa anunciavam a inclusão da batalha de Lapu-Lapu como um chamariz pro filme, como se Lapu-Lapu fosse uma grande parte da história do filme.

Exceto que a figura histórica faz tal qual Rodrigo Santoro naquele filme d’As Panteras, entra mudo e sai calado.
FORESHADOWING!

Porcausa da forma como o filme retrata os eventos históricos, entidades e parte do público filipino se opuseram ao filme e convocaram um boicote nas redes sociais, porque se nós conseguimos salvar a franquia de filmes do Sonic, em nome de Horat, eles vão salvar esse filme.

O que é meio idiota, se me perguntar, mas o temor deles é compreensível, já que eles não viram o filme e sequer existiu uma equipe de consultoria de História filipina, o que explica os nativos parecerem mais com figurantes de Em Busca de El Dorado do que qualquer outra coisa.
Mas ei, se a Netflix pode fazer uma Cleópatra negra, Lapu-Lapu pode ser um ciborgue por tudo que me importa.


Mas eu divago. Isso deu um problema tão grande a ponto de eles terem que mudar o poster, tirando as referências a Lapu-Lapu e colocando o embaixador português em maior evidência, mesmo que ele também não seja tanto um grande vilão da história. De fato, ele nunca é punido pelos seus atos… que supostamente nunca foram tão ruins anyway, foram só negócios.

Eu imagino que esse filme tenha tido muita reescrita pra jogar o cargo de vilão em outros personagens e tentar salvar a moral dos produtores ante os filipinos, porque nada mais explica a bagunça sem sal desse longa.

O filme tem muitos outros problemas mais graves do que a narrativa histórica abirobada, como a própria narrativa do filme.

É fascinante como a narrativa, através dos diálogos, consegue avançar a história do ponto A ao B, estabelece personalidades nos personagens, mas não consegue nos fazer sentir absolutamente NADA pelos modelos digitais mal-riggados.

Os personagens são tão exageradamente clichês com designs tão burlescamente óbvios que faz os vilões do Pica-Pau parecerem Game of Thrones. O embaixador de Portugal tem pele verde e dentes de tubarão, pelo amor do Takamoto! E o assistente dele não fica pra trás, sendo moldado a uma ratazana, infiltrado na tripulação de Fernão e incitando motins.

Fernão de Magalhães é todo balofo e age como se fosse um precursor do Papai Noel, sendo menos um personagem e mais uma... eu diria "ferramenta narrativa", mas nem isso é suficiente pra descrever o que raios ele faz na trama.


Agora, eu particularmente gosto do design de produção em geral. Os personagens são bem angulares com formas cheias e impostas, dando muita personalidade. Mas nada disso se traduz na animação, num caso onde o design 2D é bem melhor que o modelo 3D. Provavelmente porque foram adicionando mais elementos enquanto faziam o modelo e acabou atrapalhando o design geral, dando mais informação visual e tornando a vida do animador um inferno.

Se quiser, no site do projeto tem alguns posts com os designs originais, vale a pena dar uma olhada lá e ver como os designs 2D não são ruins, só não foram otimizados corretamente pro 3D. Eu consigo imaginar essa animação com animadores menos experientes, ou com um estilo mais próprio como os franceses e alemães.

E pra piorar a experiência, a dublagem brasileira tá completamente no piloto automático. E não é como se a emoção das vozes estivesse errada, mas tudo parece ter sido feito com um único take, e algumas vozes (em especial a da vidente) simplesmente não combinam com os personagens.
Não dá pra engolir uma personagem que, mesmo parecendo jovem, tem a malandragem das ruas e supostamente um conhecimento sobrenatural baseado em… voodoo (?) e soar como a melhor amiga adolescente de uma protagonista de sitcom da Nickelodeon pós-2010.

A única coisa que se salva nesse filme são as cenas dos navios em mar bravo e os cenários, que… São legais. As paisagens naturais parecem ter vindo de algum vídeo teste de placa de vídeo, ou aqueles vídeos bobinhos que a gente compartilhava via e-mail nos anos 2000. Cê sabe do que eu tou falando, o Hipopótamo e o Cachorro cantanddo The Lions Sleep Tonight, a Vaca Louca, Crazy Frog, e tantos outros.


O que é mais triste é que essas animações ainda são melhores tecnicamente do que Elcano e Magellan. Ao contrário do longa espanhol, nenhuma delas tem físicas onde as perssoas tem a composição física de gelatina, ou o brilho tão estourado que todas as screenshots parecem tiradas de uma camrip.

Eu já vi abusarem do color grading em live action, mas isso é o cúmulo.

Eu seriamente creio que eles passaram mais tempo animando navios ao mar e efeitos, o que é compreensível, já que a viagem foi talvez o maior feito marítimo de todos os tempos. Era necessário mostrar tempestades, geleiras, e destroços das embarcações com pelo menos algum grau de realismo, caso contrário a narrativa perderia muito de seu valor dramático.

E porque raios esse filme tá no Disney+? Digo, ok, às vezes a Buena Vista (hoje Walt Disney Motion Pictures) distribuía uns filmes aleatórios, como Turma da Mônica: Uma Aventura no Tempo e alguns filmes dos Trapalhões.

Porque esses filmes não estão no D+ é outra questão.


A ANCINE obriga os streamings a terem uma cota de produções nacionais pra encher linguiça (pelo menos até a última vez que eu chequei), mas como esse filme é espanhol, eu prevejo que ele sairá em breve da plataforma, assim como outros filmes de língua espanhola (como o terrível El Arca).

É engraçado, coisas boas como Once Upon a Mattress e a série de Turner e Hooch eles tiram, bombas como El Arca eles mantém lá. Esse mundo tá doente, com gente doente.

Agora, é interessante também que o Saberspark disse que queria ver uma narrativa madura baseado na mesma história, porque de facto, tudo que  podia que dar errado nessa viagem, deu, e essa é a parte mais interessante. Tem uma série séria (séria série) no Prime Video exatamente com essa premissa, embora eu pessoalmente preferisse uma comédia de humor negro, mais ou menos como Caramuru.


A mini-série do Prime Video reconta a mesma história, só que com mais fidelidade dramática e histórica. Eu não sou especialista, mas pelo que andei lendo, o maior erro histórico é Fernão usar um telescópio, que ainda não havia sido inventado. E também ele ter ido pro Oeste, quando na real foi pro Leste, mas talvez porque Fernão queria ser selvagem e livre.

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A série passa pelos mesmos problemas de fotografia, onde tem momentos que são escuros demais, mas que também são problemas técnicos de produções mais recentes, como você deve ter notado. Mas ei, pelo menos o Rodrigo Santoro não parece que poderia participar de um especial de fim de ano do Hallmark.
PAYOFF!

Se tiver que escolher alguma versão pra assistir, eu recomendo Sín Limites. É mais historicamente acurada, mais interessante dramaticamente (mesmo que lá pra perto do final fique meio wathever), e passa melhor as dificuldades que a tripulação passou. Mas pra uma versão que dê pra tirar sarro do cartunesco exagerado, Elcano e Magellan deve te servir. Mas te adianto: é chato pra dedéu.

Aproveita pra ler uma maneira aceitável de torcer a História pra fins de entretenimento ou didáticos com o curta Ben and Me, nesse artigo no Post Blogum.

Ben and Me (Walt Disney - 1953) por Kapan Katsuragi

É tipo Hamilton, só que com um rato no lugar do rap

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